terça-feira, 26 de dezembro de 2023

O DEUS SANTO

Faz parte da essência da fé cristã a crença num Deus manifestado em Trindade e que se define como três pessoas consubstanciais – ou seja, embora sejam três em distinções, peculiaridade e funções, mas continuam sempre sendo um único Deus (leia Dt 6:4).

As três pessoas da Trindade geralmente são citadas como Deus-Pai, Deus-Filho e Deus-Espírito Santo.  O Pai soberano e criador absoluto.  O Filho que se encarnou.  O Espírito que foi enviado e manifestado na igreja.  Os Três igualmente Deus e compartilhando dos mesmos atributos em essência.

Sobre a Terceira Pessoa da Trindade, no Credo dos Apóstolos (aprovado nos Concílios de 325 e 381), afirmamos que “cremos ... no Espírito Santo, o Senhor que dá vida, e procede do Pai e do Filho; que, com o Pai e o Filho, é juntamente adorado e glorificado; ele, que falou pelos profetas”. 

Nessa declaração do Credo, afirmamos nossa crença num Deus que se manifesta para nós através do seu Santo Espírito como Senhor e que dele provém toda a nossa vida e que nosso destino manifesto será a adoração e a glorificação divina.

Na declaração fundamental cristã, o que nos chama a atenção aqui é a distinção do Espírito Santo como designação de Deus.  Embora seja verdade bíblica reconhecer nosso Deus como sendo bom (Sl 136:1), amor (1Jo 4:8), justo juiz (Sl 7:11), eterno (1Tm 1:17), altíssimo (Sl 83:18), entre outros atributos; a definição mais precisa que define no nosso Deus na Trindade é Santo (há vários textos, por exemplo Sl 22:3 e 99:3-9).  Ser santo é o que há de peculiar em Deus e o que o distingue como um ser único. 

Nosso Deus é essencialmente Santo e ainda fala através de seus profetas.  Quando o profeta Isaias contemplou o Senhor assentado em seu trono, ele testemunhou os serafins declarando: “Santo, Santo, Santo é o Senhor dos Exércitos” (Is 6:3 – exaltação repetida em Ap 4:8).  E pela compreensão da língua original do texto, os serafins estavam declarando que “Absolutamente Santo é o Senhor, toda a terra está cheia da sua glória”.

 

(Da Revista DIDASKALIA – 1º quadrimestre / 2023 – IBODANTAS)

 

terça-feira, 19 de dezembro de 2023

CRIADOS LIVRES – vendo Deus nos detalhes



Reconhecemos que em sua eternidade, Deus decidiu criar o universo – assim principia o tempo e o primeiro momento.  E, dentro dele, homens e mulheres que lhe representassem como imagem e semelhança (assim afirmam os textos que narram a criação no Gênesis 1 e 2).

É verdade também que ao criar o tempo e o espaço e neles colocar suas criaturas, Deus não foi em nada diminuído, nem seus atribuídos tolhidos.  Ele permanece em sua eternidade onisciente – conhecedor do tudo em todas as eras e lugares.

E assim foi que fez o ser humano incompleto em sua essência e submetido à sequência de tempo.  Mas dotado de uma centelha da própria divindade, pois soprou nele do seu próprio fôlego.

Aqui então, convém entender que entre os atributos divinos compartilhados com as criaturas humanas está o da liberdade.  Deus é absolutamente livre e nada o condiciona ou limita sua vontade e seu agir.  E um pouco dessa característica também foi dada ao ser humano.

Vamos esticar mais um pouco o conceito.  Deus é criativo (Sl 148:5), ao ser humano foi-lhe dada criatividade e inventividade.  Deus pensa (Rm 11:33-34), o ser humano é racional.  Deus sente (Dt 30:9 / Sf 3:17), somos tomados de emoções.  Deus se lembra (Sl 115:12), temos memória.  Deus se move por objetivos (Jr 29:11), o ser humano faz planos.  E principalmente: Deus tem vontade (Is 43:13), e nós também.  

E nestes detalhes da nossa constituição como seres humanos que podemos detectar a imagem de Deus.

(Da Revista DIDASKALIA – 1º quadrimestre / 2023 – IBODANTAS)

 

terça-feira, 12 de dezembro de 2023

A IMPUREZA DO FLUXO DE SANGUE

 

Tenho pensado em suas colocações e elas merecem algumas considerações.  Mas, antes, deixe-me dizer algo:  como não ouvi toda a pregação, não estou em condições de opinar sobre todo o contexto.  Então vamos dar atenção apenas a sua questão em particular.

 

Pelo que entendi, a pregação versou sobre o episódio do encontro de Jesus com a mulher do fluxo de sangue, narrado em Mc 5:24-34.  E fez um paralelo com a Lei antiga que trata das secreções corporais.

A passagem que trata especificamente das secreções corporais é o capítulo 15 do Livro de Levítico. 

O texto apresenta as situações das emissões normais e anormais de homens e mulheres – sêmen, menstruação, corrimentos, sangue, entre outros.  Pelas normas da Lei qualquer pessoa que emitisse secreções ficaria “cerimonialmente impura” (Lv 15:2).  Também aponta os rituais necessários para as devidas purificações.

Sobre o caso da mulher que tocou nas vestes de Jesus (lá na narrativa do Evangelho), seria o caso de fluxos anormais – o que estaria explícito na Lei a partir de Lv 15:25-30. 

Aqui chegamos à questão que você me apontou: “ela era imunda e que, se fosse casada, provavelmente seria separada do marido. Após a cura ela poderia casar novamente? Com o marido ou com outro?

 

E vamos separar as questões para responder por parte:

 

#1° – ela estava sim cerimonialmente impura.  Na Lei havia distinção entre a vida civil e as delimitações rituais religiosas, mas em gerais tais restrições se confundiam e as pessoas que se tornassem impuras para as cerimônias religiosas também eram consideradas imundas para a vida comum.  Então esse seria o caso da mulher.

#2° – não há referência para a situação de casamento da mulher.  Então vamos olhar somente para as prescrições da Lei.  Todas as restrições descritas no texto do Levítico não fazem distinções sobre o impuro ser solteiro ou casado.  É dito apenas que se de um homem ou de uma mulher sair qualquer fluido, ele (ou ela) ficará impuro e excluído da vida religiosa e social.  Isso valeria para todos.

#3° – as regras de impureza não implicariam em se desfazer do casamento.  Apenas que seja evitado qualquer toque – inclusive sexual.  Ou seja, a situação de corrimento, ou fluxo anormal, não seria indicativo para anulação de casamento ou divórcio.  Assim, a pessoa – no caso, a mulher – que estivesse casada ao identificar o fluxo anormal, manteria seu casamento e, nesse caso, tanto o homem quanto a mulher deveriam manter seus compromissos familiares, evitando apenas o contato físico.

#4° – após o fluxo anormal cessar, algumas regras cerimoniais e sanitárias deveriam ser cumpridas e então a pessoa poderia voltar a vida normal: se casado, voltaria para sua vida familiar retomando o direito ao toque e a intimidade – uma vez que o impedimento já não existia.

 

No caso do milagre acontecido após o toque da mulher no manto de Jesus, a saúde da mulher foi restaurada de maneira completa, tornando-a pura e prontamente apta para voltar a sua própria vida sem impedimento ritual nenhum.

 

Vá em paz.  Volte para sua vida, toque, abrace, viva, desfrute sua intimidade! Seu sofrimento acabou. (Mc 5:34)

 

terça-feira, 5 de dezembro de 2023

JESUS VIRÁ

 

   

A certeza da verdade Bíblica de que JESUS VIRÁ deve nos fazer compreender as palavras sagradas como orientação e direcionamento para nossa vida cristã hoje.


Uma reflexão Bíblica baseada em Ap 22:7 - "Eis que venho em breve! Feliz é aquele que guarda as palavras da profecia deste livro."


terça-feira, 28 de novembro de 2023

A ATUALIDADE DOS DONS

 


A questão dos dons espirituais tem provocado algumas das discussões bastante acaloradas em círculos eclesiásticos. E entre os pontos de discussão está sobre a atualidade dos dons e sua aplicação ainda para a igreja do século XXI.

Para responder a questões assim, devemos nos voltar em primeiro lugar ao Texto Sagrado na busca indicações seguras.  E a primeira constatação é que não há verso bíblico que indique que os dons apresentem “data de validade”.  Ou sejam em nenhuma parte do Novo Testamento é dito de maneira explícita que haveria um tempo quando os dons se tornariam obsoletos.

Por outro lado, Paulo indicou que os dons e o chamado de Deus são irrevogáveis (Rm 11:29).  E mesmo que o contexto onde lemos esse versículo se refira a salvação eterna dos crentes, mas a compreensão pode ser bem estendida para nosso estudo.

A verdade bíblica é indiscutível quando afirma que Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e para sempre (Hb 13:8), que ele se comprometeu em estar com seus discípulos até os confins dos tempos (Mt 28:20) e que não os deixaria órfãos, enviando seu Espírito (Jo 14:18 e 26).

Quanto a atualidade e a validade dos dons hoje?  O que podemos compreender é que enquanto a igreja tiver necessidades espirituais e sociais que precisem ser supridas, o Espírito está capacitando seus servos para desenvolverem ministérios que atendam a tais necessidades.

(Da Revista DIDASKALIA – 1º quadrimestre / 2023 – IBODANTAS)

 

terça-feira, 21 de novembro de 2023

APTIDÃO E PASTORADO

 

Para responder sua questão, eu preciso fazer algumas considerações:

 

Primeiro – a escolha e vocação para o ministério na igreja é da exclusiva competência de Cristo, o Cabeça e dono da igreja (considere Jo 15:16).  Os critérios são dele e ninguém está, por si só, apto para exercer (lembre Rm 3:10).  Ou seja, ELE escolhe quem quer e então ELE mesmo é quem capacita e torna apto.

Segundo – os pecados do passado não definem nosso futuro (independente do tempo).  O perdão que Cristo oferece, a partir do seu sacrifício da cruz, é completo e final (alinhe Cl 2:13-14 e Mq 7:18-19).  Havendo arrependimento e confissão: há perdão verdadeiro em Cristo (importante 1Jo 1:9).

Terceiro – sei que existe o problema do escândalo (e isso é grave!). Há advertências nessa área e Jesus levou muito a sério o cuidado com os pequeninos (leia Mt 18:6-9).  Então qualquer decisão espiritual e ética tem que considerar esse aspecto.  Mas, insisto, a decisão final é sempre da competência do Senhor da igreja.

Quarto – aqui eu lhe apresento apenas uma breve reflexão bíblica e teológica do assunto e não um posicionamento inflexível e cabal sobre questões pontuais.  Essas precisariam ser analisadas de modo individual e peculiar.

 

Foi bom você consultar – esse é sempre um bom caminho (e é bíblico – Pv 11:14).  Você começou acertando.  Meu conselho é que insista em colocar o problema diante do Altíssimo que ELE vai dar o direcionamento correto.  E se quiser conversar mais, estamos à disposição.

 

Aproveitando: aí vão três links que podem ajudar a pensar no tema:

 

Sobre ministério pastoral – respostas sobre minha visão e chamado para o ministério pastoral – link

 

Pecado lavado – reflexão sobre a dádiva do perdão ofertado por Cristo na cruz – link

 

Como entender Mt 18:10 – a partir de um questionamento, uma análise da figura folclórica do “anjo da guarda” e a verdade do cuidado com os pequeninos – link

 

terça-feira, 14 de novembro de 2023

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (4) – a esperança

Para um tempo de perda de esperança, o culto cristão é a esperança.

Voltando a observação à Pós-Modernidade posso notar que a situação de caos ou de desprovimento de historicidade levada aos seus últimos termos conduzirá a uma história sem esperança e a um presente sem futuro.  Ao amputar o passado como referência para estruturar o presente, a Pós-Modernidade negou a possibilidade de expectativa de futuro.  Cito Tarsis Lemos:

Todo esse caos moderno que levou a humanidade a um impasse radical, perdida nos labirintos de sua razão pura, sem solução no plano de sua horizontalidade finita, fez com que o olhar ensinado e aprendido a apenas se encantar com o espelho, redescobrisse a amplitude do firmamento.  A solução única está em se olhar para cima.  Não se critica a tecnologia que gerou o progresso, mas o progresso que avançou destruindo a civilização.  Progresso sem civilização é regresso ao estado de barbárie.  Nossa preocupação é com a sofisticação da barbárie que cria um retrocesso desumano.

O britânico Krishan Kumar comenta: "O pós-modernismo representa a ruptura interminável com o passado, por mais radical que este tenha sido em sua própria época; é o que dá ao modernismo o seu significado".  E, mais adiante, desvenda as consequências deste posicionamento: "Ao agir assim, de onde a teoria da pós-modernidade recebe seu principal impulso: não do anúncio de alguma coisa nova, em sentido positivo, mas na rejeição do velho, do passado da modernidade".

Ao se defrontar com este desenraizamento histórico que torna sombrio e obtuso qualquer futuro e esperança, o culto cristão se volta para aquele que é, que era, e que há de vir (Ap 1:8).  Na celebração cristã não está simplesmente a constatação do progresso contínuo do presente – como propunha a Modernidade – nem "eternização" do presente atemporal como demonstra a Pós-Modernidade; mas, como nos diz Paul Tillich:

No louvor à majestade divina, está incluído o louvor ao destino da criatura.  É por isto que o louvor a Deus desempenha um papel tão decisivo em todas as liturgias, hinos e orações.  Certamente, o homem não louva a si mesmo quando louva a majestade de Deus; mas ele louva a glória da qual participa através de seu louvor.

Compreendendo assim o culto como celebração, ainda que dentro da história, mas apontando para eventos supra históricos, é válido citar a observação do teólogo norte-americano Harvey Cox:

Na festividade, intensificamos nosso envolvimento na história e, paradoxalmente, nos abstemos de fazer história.  O evento que celebramos é histórico, passado ou futuro, tanto assim que nos ajuda a rememorar e a esperar.  Mas durante a celebração nós paramos de fazer e simplesmente estamos aí; movemo-nos, como diria Norman Brown, do "acontecer" para o "ser", e também isso é crucial.  Se não tivéssemos nem passado nem futuro para celebrar, vítimas seríamos dum presente a-temporal e anistórico.  Se, por outro lado não cessássemos jamais de fazer história nem nunca celebrássemos, descambaríamos igualmente num mourejar ininterrupto, já não conhecendo nem descanso, nem alegria, nem liberdade.

Para um mundo pós-moderno desenraizado e principalmente sem poder oferecer perspectivas futuras, onde homens e mulheres não conseguem vislumbrar esperanças, nem mesmo em sua crescente busca religiosa, nem na espiritualidade que não lhe promete nada porque sabe não poder cumprir, o culto cristão apresenta a este ser humano o encontro com uma esperança concreta a qual se inicia no tempo presente e desemboca num futuro glorioso.  Sendo o culto uma celebração a ser realizada em meio da coletividade de fiéis que se congregam não somente para buscarem um encontro místico com o sagrado, mas também para se relacionarem com um Deus pessoal que se revela na comunidade, então esta celebração revestida do seu caráter diaconal e comunal apresenta uma esperança concreta que faz cada cultuante experimentar a certeza de coabitar desde já na comunidade de fé – a comunhão dos santos – a antecipação da "glória que em nós será revelada" (Rm 8:18).  É participando deste culto coletivo que o cristão então se torna consciente de não ter "aqui nenhuma cidade permanente", mas ter os seus olhos postos na "que há de vir" (Hb 13:14). 

É esta crença e esperança que ele celebra em seu culto: o encontro com Cristo "a esperança da glória" (Cl 1:27).

 


§. Esse é um extrato retirado do meu livro:
DE ADÃO ATÉ HOJE – um estudo do Culto Cristão

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§. Leia também:

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (1) – o místico e o misterioso

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (2) – o transcendente e o encontro com o sagrado

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (3) – a reordenação do mundo

 

Conheça mais outros livros meus:
TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
PARÁBOLA DAS COISAS
ENSAIOS TEOLÓGICOS


terça-feira, 7 de novembro de 2023

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (3) – a reordenação do mundo

 

Para um tempo envolto em um mundo caótico, o culto cristão mostra-se com apresenta-se como a reordenação do mundo.

Uma das caracterizações mais marcantes da Pós-Modernidade é, sem dúvida alguma, a desorganização do mundo.  Enquanto que na Modernidade o ser humano procurou dar certa ordenação ao seu mundo, estabelecendo valores e criando "lugar" para todos os conceitos, na Pós-Modernidade esta ordenação não subsiste à fragmentação do mundo.  Se a ordenação da criação é o cosmo, o seu contraponto é o caos.  Leonildo Campos no mesmo texto citado a pouco argumenta:

O conceito de pós-modernidade pressupõe uma perspectiva de descontinuidade e de rompimento das fronteiras anteriormente delimitadas.  Assim, o ser humano estaria vivendo um processo social de atomização, tornando-se mais individualista, desprovido de historicidade, voltando-se para si mesmo, na busca de referências para o viver diário.

Posição com a qual Paula Muriel Belmes concorda ao citar David Harvey: "o que parece ser o fato mais assombroso do pós-modernismo é sua total aceitação do efêmero, da fragmentação, da descontinuidade e do caótico".  Sem dúvida, a Pós-Modernidade não conseguiu suprir o ser humano de referências consistentes.  O caos ameaça o cosmo pós-moderno e somente uma nova experiência fundante poderá resgatar esta humanidade.  Assim o culto cristão, como um contato com o sagrado, pode oferecer esta nova ordenação do mundo.  Rubem Alves no seu livro sobre O Enigma da Religião, considerando sobre o que chamou de "o segundo momento da experiência da conversão" expõe o que bem poderia ser entendido como o resultado de uma experiência cristã de culto:

Inesperadamente, entretanto, um milagre acontece.  O momento de crise e desestruturação da personalidade encontra uma solução.  A consciência ressuscita, transfigurada, como uma nova estrutura em que tanto os conteúdos emotivos quanto os cognitivos são radicalmente novos.  A experiência tem o caráter de milagre porque parece impossível descobrir um nexo entre o antes e o depois.  O homem se sente possuído por uma inebriante sensação de paz e alegria.  As tensões são resolvidas.  Sem saber como isto ocorreu, descobre-se transportado Nada para o Ser, das Trevas para a Luz, do Fim para o Princípio, da Morte para a Vida.  Encontrou a salvação.  Ou mais precisamente, foi por ela arrebatado.  Experiência preservada nos mitos cosmogônicos no miraculoso e inexplicável salto do caos para a ordem, dos abismos para a terra seca, do turbilhão para o jardim, das águas do mar para o rio da vida.

Diante de um mundo organicamente desestruturado onde todos têm liberdade quase absoluta de vivenciar suas crenças e espiritualidades individuais sem compromissos, o ser humano pós-moderno vive o dilema: ter todas as possibilidades é o mesmo que não ter nenhuma, ou seja, com bem notou Edvar Gimenes, "pela hipervalorizarão dos sentimentos e relativização de verdades antes absolutas, a cultura da pós-modernidade gera conflitos entre formas mais racionais de expressões litúrgicas e outras mais emocionais", contudo, "o espírito, a necessidade e o desejo de adoração permanecerão!".  Assim é que o culto prestado pelos cristãos é estabelecido como a resposta possível a esta situação: o apóstolo Paulo escreveu aos Romanos sobre a necessidade de um "culto racional" (Rm 12:1) e aos Coríntios prescreveu que "tudo deve ser feito com decência e ordem" (1Co 14:40).  O culto cristão, mesmo sendo a expressão da alma faminta (retomo a expressão de James Houston), contudo em sendo feito "em espírito e em verdade" (Jo 4:23) compreende a única aceitável e melhor resposta à desestruturação pela qual passam homens e mulheres. 

Proporcionando um encontro entre o fiel cultuante e o Deus que no princípio ordenou o cosmo a partir do caos, o culto cristão fornece a possibilidade segura que novamente ele mesmo reordenará o mundo humano.  Isto é visto mais claramente no caráter querigmático e didático presente no culto cristão.  Se ainda neste tempo o homo religiosus procura respostas às questões sobre seu lugar no mundo e o que esperar dele, o culto cristão didaticamente lhe anuncia "novos céus e nova terra" (Ap 21:1).  Se no princípio foi a Palavra de Deus quem criou e deu ordem ao mundo (Gn 1); será a presença da mesma Palavra no culto através do querigma que haverá de trazer novamente ordem ao mundo caótico experimentado pela Pós-Modernidade.  Por meio da Palavra de Deus, o culto então anuncia a reconstrução do mundo dando-lhe significado e oferecendo soluções seguras às dúvidas humanas. 

 


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§. Leia também:

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (1) – o místico e o misterioso
O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (2) – o transcendente e o encontro com o sagrado


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quarta-feira, 1 de novembro de 2023

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (2) – o transcendente e o encontro com o sagrado

 


Para um tempo de sacralidade impessoal, o culto cristão apresenta-se como transcendente e encontro com o sagrado.

A segunda resposta à espiritualidade e à crescente religiosidade pós-moderna, de certo modo, está em contiguidade com a resposta anterior.  A mística contemporânea além de vazia em si, não reconhece o seu objeto de culto como sendo alguém que lhe responda pessoalmente.  A pós-modernidade tem buscado a transcendência – uma vivência além do dado objetivo buscado na modernidade científica – e o encontro com o sagrado como marcas características de seu tempo.  Nas palavras de Leonildo Campos, que encontro na introdução ao seu livro Templo, Teatro e Marcado, é típico deste tempo a "valorização da energia e da potencialidade do homem individual, interligado com as forças vivas do cosmo e do universo", o que eu chamaria de despersonalização da relação com o sagrado.  Ao encarar o cosmo como sagrado em sua totalidade, carece o ser humano pós-moderno de um relacionamento pessoal com o ente divino. 

São da Teologia Sistemática de Tillich as palavras:

O símbolo "Deus pessoal" é absolutamente fundamental porque uma relação existencial é uma relação de pessoa-a-pessoa.  O homem não pode estar interessado de forma última por algo que seja menos do que pessoal.  E já que personalidade (persona, prosopon) inclui individualidade, surge a questão: em que sentido Deus pode ser chamado de indivíduo? Tem sentido chamá-lo de "indivíduo absoluto"? A resposta deve ser que tem sentido na medida em que ele pode ser chamado de "participante absoluto".  (...)

Significa que Deus é o fundamento de tudo que é pessoal.  E que ele traz dentro de si mesmo o poder ontológico de personalidade.  Ele não é uma pessoa.  Mas não é menos do que uma pessoa.

Diante de uma percepção do sagrado distante e despersonalizado e da certeza de que as suas próprias ações haveriam de lhe fazer sucumbir, o salmista ora: "Não me lances de tua presença" (Sl 51:11).  É neste contexto que o culto cristão deve se mostrar como um encontro com o sagrado, mas sobretudo um encontro com o sagrado personalizado que se revela e se dá a conhecer.  O culto cristão mostra-se como um encontro pessoal.  O místico medieval Bernardo de Clairvaux (1090-1153) dizia:

Não me importa quão cedo eles possam acordar e se levantar para orar na capela, numa madrugada gelada de inverno, ou nas altas horas da noite; eles sempre descobrirão que, antes disso, Deus estava acordado, aguardando-os, ou melhor, Ele os tinha acordado para buscarem a sua face.

No seu pequeno trabalho sobre Liturgia e Culto Cristão o Professor João Ferreira Santos coloca: "Na liturgia cristã se celebra a imanência de Deus, isto é, o ato em que o Deus Transcendente desce para estar com o homem, na pessoa de Jesus Cristo, o Verbo que se fez carne, o Parácleto que está conosco para sempre".  Ainda num texto devocional da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil de 2003 lê-se:

Sinteticamente, culto é "o encontro da comunidade com Deus".  Esse encontro só é possível porque Deus permite e reúne a comunidade.  Não é a comunidade que convoca, mas Deus se coloca à disposição (Mt 18:20) e foi Ele que ordenou que esse encontro acontecesse (1Co 11:24 e 25).  Deus ordena e vem ao encontro da comunidade no culto.  Não só o/a pastor/a, mas também a comunidade toda é responsável para que seja um bom encontro com Deus.  O/A pastor/a ajudam a comunidade a celebrar o culto, a celebrar o encontro com Deus.  A liturgia é justamente o "conjunto de elementos e formas através dos quais se realiza esse encontro".

Em outras palavras, o culto cristão é a celebração da presença divina no Encarnado; é a certeza de que o divino se fez história recriando a própria criação e transformando-a em simpática à vida humana.  Rubem Alves em Da Esperança afirma: "É na história que Deus e o homem engendram um futuro comum.  Este não é simplesmente um futuro que Deus cria para o homem, mas ele é criado por ambos, numa histórica cooperação dialógica.  Esta é a implicação necessária de sua encarnação: ele continua aberto ao homem".

Apontei que o culto cristão traz como um dos seus elementos fundamentais o caráter celebrativo e adorativo, e é exatamente por ter este caráter que o culto cristão pode oferecer respostas significativas para as questões existenciais humanas no contexto da Pós-Modernidade.  Diante de uma sacralidade impessoal e silenciosa, o culto cristão se apresenta como o encontro entre o ser humano e o Deus pessoal que se revela e para o qual devotamos a nossa adoração em um ato de celebração consciente e consequente.

Certamente neste ponto destaco a principal resposta cristã à pós-modernidade: o culto é eminentemente um encontro.  Não havia dúvida quando, No Baú da Adoração, eu afirmei: "culto é encontro, e encontro primordialmente com Cristo".  Ele, o culto, é a resposta ao desencantamento provocado pela pós-modernidade.  No culto cristão acontece a ocasião e a possibilidade do encontro com o sagrado, a certeza de que há um Deus pessoal e, mais que isso, um Deus que sendo imenso e transcendente ainda assim desce para coabitar com o ser humano.  "Aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós, vimos a sua glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de verdade" (Jo 1:14), esta é a resposta mais clara que o culto cristão tem a oferecer a este tempo: a inefável glória do Criador pode ser alcançada através do contado pessoal no culto oferecido a ele.  O Deus adorado no culto cristão é o Infinito-Pessoal e foi personificado historicamente no Encarnado.

 


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§. Leia também:

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (1) – o místico e o misterioso

 

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quinta-feira, 26 de outubro de 2023

O CULTO NA PÓS-MODERNIDADE (1) – o místico e o misterioso

 


Para um tempo de espiritualidade exacerbada, porém difusa, o culto cristão apresenta-se como místico e misterioso.

 

Num artigo publicado em O Jornal Batista no ano de 1996 eu já afirmava que "a despeito das previsões do Positivismo, o século XX tem visto ressurgir o espírito religioso.  Curandeiros, místicos e profetas povoam o nosso mundo secularizado".  Esta afirmação constatava que, embora a modernidade tenha primado pelo conhecimento do rigor metodológico científico, "o Sagrado tem feito com que os filhos da tecnologia de ponta se ajoelhem diante de sua irresistível sedução", nas palavras de Tarsis Lemos. 

Neste aspecto, como disse Atilano Muradas, "a pós-modernidade não é moderna quando valoriza o sagrado".  Porém, ao contrário da experiência mística da antiguidade, a espiritualidade pós-moderna já não está ligada a "parâmetros ou referências institucionais", segundo observação de Leonardo Boff, nem se apresenta de modo unívoco, mas como um "caleidoscópio de misticismos e mistificações" – a expressão é de Tarsis Lemos.  A pós-modernidade é um período por excelência onde toda e qualquer manifestação mística e religiosa deva ser considerada válida e mereça ser buscada.  E exatamente por ser algo difuso e sem referenciais objetivos é que este espiritualismo contemporâneo se torna insuficiente para atender aos anseios humanos.  Sendo sem profundidade, o misticismo pós-moderno não consegue superar a aridez da alma carente.  Esta alma, desraigada do mundo em que vive e sem perceber perspectivas seguras, e até por isso mesmo, se agarra cada vez mais ao espiritual, mágico e esotérico, continuando ainda vazia em si.  Com o que Asaph Borba concorda: "A pós-modernidade é regada pelo humanismo que acaba produzindo um vazio profundo".

Para responder a este misticismo vazio, Paul Tillich em sua Teologia Sistemática reconhece que o culto cristão vem a ser a "elevação responsiva da Igreja até o fundamento último do ser" o que deve incluir "adoração, oração e contemplação" – com o que Muradas concorda: "todo culto é de louvor, de adoração, de contemplação".  Enquanto que o misticismo e a espiritualidade pós-moderna buscam elevar – ou conduzir – o ser humano ao distanciamento e ao vazio; o culto é a resposta cristã a este vazio distante, não por que em si seja a solução, mas por ser ele o momento de "entrar em aliança com o Senhor" (Dt 29:12).  O culto cristão não é uma busca pela espiritualidade oca.  No culto, o cristão sabe a quem dirige a sua adoração: "nós adoramos o que conhecemos" (Jo 4:22).  O culto cristão não é – não deve ser – simplesmente uma sucessão de atos rituais, embora contendo conotações litúrgicas e espiritualizantes, mas uma reunião onde o conteúdo do encontro se sobressai.  Nunca é o rito religioso por si mesmo.  Questionado sobre se um culto essencialmente cristão é caracterizado mais pelas ações rituais ou pelas experiências existenciais, Rubem Amorese assim se expressou:

Não é possível conceber conteúdo sem forma, mas o contrário sim.  Portanto, a liturgia sempre estará presente, como forma do culto.  No entanto, o conteúdo, ou sejam, as experiências emocionais são mais importantes para Deus.  Essas experiências podem ser divididas, teoricamente em três: expressão, oferta e transformação.

Devo aqui ressaltar o que já observei tratando dos elementos do culto: o culto cristão traz na sua essência o caráter místico, porém este vem necessariamente acompanhado do elemento eucarístico.  Como disse ali, o culto cristão está envolvido em mistério e beleza, porém só se realiza na certeza de um encontro que, além de ser o momento especifico onde a terra e o céu podem se tocar (Gn 28:17), ele acontece na celebração eucarística da memória da intervenção divina na história em Cristo Jesus e na expectativa na irrupção do Reino (1Co 11:24-26).  Assim como resposta à postura mística vazia pós-moderna, o culto cristão apresenta um contato e um diálogo que completa o ser humano na certeza presente e necessária ao culto, a qual faz do seu momento não eventos autocentrados, mas encontros existencialmente significantes.

Comparando a espiritualidade pós-moderna bem marcada na proposta nos gurus orientais em oposição ao culto cristão que junto com a prática da disciplina cristã da meditação preenchem o cultuante, Rubem Amorese no seu livro Louvor, Adoração e Liturgia afirma:

Qualquer que seja a imagem, é importante ressaltar que, diferentemente da experiência do esvaziamento da mente, para falar com Deus é preciso interagir com ele, por meio de contemplação e audição.  Na correria da vida, vamos pegando uma lição aqui, outra ali, fazendo orações etc., mas raramente "meditamos na sua lei", raramente nos quedamos a conversar diretamente com ele.

O salmista demonstrou esta relação de intimidade ausente na mística pós-moderna, mas bem presente no mistério do culto cristão quando afirmou: "Até o pardal achou um lar, e a andorinha um ninho para si, para abrigar os seus filhotes, um lugar perto do teu altar, ó Senhor dos Exércitos, meu Rei e meu Deus.  Como são felizes os que habitam em tua casa; louvam-te sem cessar!" (Sl 84:3-4).

 


§. Esse é um extrato retirado do meu livro:
DE ADÃO ATÉ HOJE – um estudo do Culto Cristão

 Está disponível no:

Clube de autores
amazon.com

 

Conheça mais outros livros meus:

TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
PARÁBOLA DAS COISAS
ENSAIOS TEOLÓGICOS



terça-feira, 17 de outubro de 2023

quarta-feira, 11 de outubro de 2023

O QUE É RELIGIÃO?

 

O ser humano foi criado para se relacionar com Deus e, por isso mesmo, sempre vai desejar o encontro.  Nas palavras de Agostinho de Hipona: “porque nos fizeste para ti, e nosso coração está inquieto enquanto não encontrar em ti descanso”.  Ou seja, homens e mulheres sempre buscarão o místico, o sagrado e o transcendente – este é o impulso natural de sua alma e coração.  Compreendendo assim, em certo sentido, religião é o que poderíamos chamar de manifestação essencialmente humana. 

De acordo com o dicionário, a religião pode ser entendida em dois conceitos: (1) crença de que existe uma força sobrenatural criadora do Universo, de todas as coisas e pessoas, sendo essa força Deus; e (2) reunião dos princípios, crenças e ou rituais particulares concebidos a partir do pensamento de uma divindade.

Por esse conceito: todo ser humano, em qualquer época ou lugar, atribui respostas sobrenaturais ao mundo que o cerca e por isso crê que há forças místicas superiores (pessoais ou não) que estabeleçam valores e normas.  E mesmo aqueles que se dizem ateus, de certa maneira atribuem valor sagrado a algo – conceito, pessoa ou coisa.

Também, a vivência humana em sociedade sempre passa a ser estabelecida a partir de normas religiosas reconhecidas que estabelecem valores e comportamentos.  É o reconhecimento da divindade e do sagrado que dita os critérios e a moralidade das relações sociais.  Inclusive toda a construção cultural passa ser orientada tendo essas mesmas bases.

 

(Da Revista DIDASKAIA – 1º quadrimestre / 2023 – IBODANTAS)