terça-feira, 30 de junho de 2020

ASSIM É O AMOR (parte 3)

 

Esta é a última parte da lista de atitudes que podem ser reconhecidas no amor, conforme o apóstolo Paulo cantou na sua Carta aos Coríntios.  Veja aí as expressões de 1Co 13:7-8.

 

Tudo sofre (πάντα στέγει) - uma boa opção de tradução seria: o amor tudo aguenta (ou leva nos próprios ombros).  Um bom exemplo foi dado pelo próprio Paulo quando declarou que preferiu aguentar qualquer coisa por amor para não ser pesado à igreja (confira 1Co 9:12).

Tudo crê (πάντα πιστεύει) - eu diria que o amor se baseia completamente na fé.  E é bom lembrar que Jesus declarou que quem nele depositar sua fé, ainda que esteja morto viverá (dito em Jo 11:25).

Tudo espera (πάντα ἐλπίζει) - também, o amor vive em toda expectativa (acrescento: boa expectativa).  Temos a garantia de que o Deus que é o amor nos outorga uma esperança a qual não decepciona (ateste em Rm 5:5).

Tudo suporta (πάντα ὑπομένει) - literalmente diria que o amor demonstra resistência. Ampliando o sentido: o amor é o alicerce seguro de tudo.  Aos Hebreus é dito que Jesus suportou tudo pelos pecadores (Hb 12:3).  Isso sim é atitude e exemplo de amor que é a base de tudo.

Nunca perece (οὐδέποτε πίπτει) - a última afirmação sobre o amor: o amor nunca cai derrotado - o amor nunca se rende, nunca se prostra, nunca tomba.  A falta de amor nos faz cair - como Saulo a caminho de Damasco (narrado em AT 9:1-6) - mas o amor divino sempre nos ergue.  Esse é o modelo.

 

Assim, chegamos ao último verso desse capítulo 13 com a afirmação categórica de que fé, esperança e amor (πίστις, ἐλπίς, ἀγάπη) ainda permanecem. Mas entre esses três, sem dúvida, o maior dele é o amor.

 

Leia também:

 

Aqui a 1ª parte - 1Co 13:4

Aqui a 2ª parte - 1Co 13:5-6

 

sexta-feira, 26 de junho de 2020

SABEDORIA E INTELIGÊNCIA

 

O livro da profecia de Daniel narra, nos sete primeiros capítulos, a trajetória de quatro jovens judeus na corte da Babilônia - Daniel (chamado em língua local de Beltessazar), Hananias (Sadraque), Misael (Mesaque) e Azarias (Abede-Nego).

Logo no começo da narrativa os garotos são apresentados como nobres exilados, levados de Jerusalém depois que o rei Joaquim sucumbiu diante do exército de Nabucodonozor.

Mas o rei conquistador tinha planos para os deportados: incutir neles a cultura, a religião e os hábitos babilônico, fazer deles típicos colonizados - uma recorrente relação de dominação cultural e etnocentrismo, de metrópole e colônia, de racismo e subjugação ideológica.

Aconteceu porém que os quatro heróis decidiram não se conformar com as práticas impostas.  Criado o impasse, os jovens conseguiram uma brecha de dez dias para provar que seu modus vivendi - ou Jewish way of life - apresentaria resultados mais expressivos.

Com um prazo tão curto, a intervenção divina fez toda a diferença.  E o texto sagrado diz: "A esses quatro jovens Deus deu sabedoria e inteligência para conhecerem todos os aspectos da cultura e da ciência" (Dn 1:17 - é interessante continuar lendo até o verso 20).

Se a intenção era capacitar os jovens com as artes e ciências daquela terra, foi-lhes concedida sabedoria e inteligência celeste.  Perspicácia, tirocínio, razão, ciência, intelecto; tudo isso e muito mais cedido de graça por aquele que tudo sabe e tudo conhece (lembro o hino de louvor em Rm 11:33-36 que louva o Onisciente).

Agora, me permita descrever a sabedoria e inteligência que foi dada aos jovens nobres, vinte e quatro séculos atrás, com modos de hoje.  Acho que assim fique melhor de entender.

Depois de se submeterem não ao capricho de um governante temporário, mas àquele que eternamente tudo define, os jovens passaram a dominar também o método, os critérios, os pressupostos e ditames de todo conhecimento científico.

Eles se tornaram versados em ciência pura.  Matemática, física, astronomia, mecânica quântica, química.  A formação e interação de elementos e forças.  Os tempos, os espaços e as sequências.  O Cosmo e o átomo.  O macro e o micro.

Eles dissecaram as ciências da vida.  Bioquímica, botânica, farmacologia, anatomia, ecologia, genética.  As enzimas, os ácidos e as células.  A fotossíntese, os instintos e a reprodução. A bio, a gaia e o zoo.

Eles compreenderam os meandros das ciências humanas.  Psicologia, sociologia, linguística, história, direito, geopolítica, antropologia.  A mente, a alma e seus contornos e cores.  As sociedades e seus mecanismos.  Os impulsos individuais e as pressões coletivas.  O meu e o nosso.

Mas também percorreram as trilhas do saber.  Filosofia, arte, epistemologia, literatura, metafísica, ontologia.  O pensamento e a lógica.  A sabedoria e a erudição.  A ética e a estética.  O belo e o correto.

Então eu, olhando aqueles doutos jovens, posso me ver chegando a duas conclusões.

Primeiro.  A verdadeira piedade cristã se opõe diametralmente ao obscurantismo intelectual.  John Stott já dizia que crer é também pensar.  Fé e ciências precisam ser parceiras e nunca adversárias.

É claro que sempre haverá aqueles momentos nos quais vou concordar com Agostinho que dizia: crede, ut intelligas - "creia para que possa entender".

Segundo.  Quando não consigo entender um determinado postulado ou enunciado eu não devo simplesmente relegá-lo a ignorância nem a detratação.  O entendimento joanino de investigar os espíritos, entendo que pode ser estendido para aqui (cito 1Jo 4:1).

Também é bom observar que Tiago instrui a quem não tem sabedoria que peça a Deus que ele dá liberalmente - como fez com os jovens judeus (a referência é Tg 1:5).

E acrescento uma terceira mais, fazendo minhas as palavras de Paulo: comam, bebam, creiam e aprendam; mas façam tudo para a glória de Deus (1Co 10:31).

 

terça-feira, 23 de junho de 2020

ASSIM É O AMOR (parte 2)

 

Dando prosseguimento a lista de atitudes que podem ser reconhecidas nesse amor.  Veja aí as expressões de 1Co 13:5-6 (leia a primeira parte aqui).

 

Não maltrata (οὐκ ἀσχημονεῖ) - não é próprio ao amor agir de forma indecorosa ou comportar-se de maneira desonrosa.  Por outro lado, a recomendação de Paulo é que nossa responsabilidade seja viver decentemente (leia em Rm 13:13).

Não procura seus interesses (οὐ ζητεῖ τὰ ἑαυτῆς) - literalmente buscar ou exigir o que é seu, o próprio.  Pouco antes, o mandamento apostólico foi para que ninguém se ocupe apenas com seu próprio bem, mas dê atenção em cuidar dos outros (em 1Co 10:24).  Esse é o padrão de comportamento do amor cristão.

Não se ira (οὐ παροξύνεται) - ou seja, o amor não explode diante de provocação ou irritação.  Pelo contrário, o autor aos Hebreus instrui que nos provoquemos e motivemos em amor (Hb 10:24).

Não guarda rancor (οὐ λογίζεται τὸ κακόν) - pode ser dito: o amor não cogita - ou não leva em conta - o mal.  A indicação de Paulo aos Filipenses se enquadra no comportamento adequado para o verdadeiro amor: cogitem no que é bom (Fl 4:8).

Não se alegra com a injustiça (οὐ χαίρει ἐπὶ τῇ ἀδικίᾳ) - a tradução aqui é bem direta: a alegria do amor não está na injustiça.  O mandamento apostólico é para que nossa alegria se estabeleça na esperança (em Rm 12:12).

Mas se alegra com a verdade (συνχαίρει δὲ τῇ ἀληθείᾳ) - em oposição à negação anterior, agora o poema enfatiza a se somar na alegria que a verdade deve proporcionar.  A ilustração do corpo para falar da igreja que Paulo usou pouco antes nessa mesma carta mostra que nos amamos enquanto alegramos juntos (1Co 12:26).

 

A riqueza do texto ainda prossegue, ainda vem uma terceira parte da lista de expressões de 1Co 13.

 

Leia aqui a 1ª parte - 1Co 13:4

Leia aqui a 3ª parte - 1Co 13:7-8

 

sexta-feira, 19 de junho de 2020

SE SOU CRISTÃO

 

Recentemente meu irmão Jader relembrou em seu Face a letra da canção "Que estou fazendo se sou cristão?"  Gosto dessa música.

Para quem não conhece, vou apresentá-la rapidamente.  Em 1967, enquanto o Brasil começava a endurecer sua ditadura, o reverendo presbiteriano João Dias de Araújo, juntamente com João Wilson Faustini, entendeu que aquele era um momento de fazer música com uma temática que refletisse as questões cotidianas e de como nosso cristianismo poderia ser uma resposta.  Assim surgiu a letra.

A música que cantamos aqui (está no HCC nº 552) foi composta em 1974 por Decio Lauretti e o seu comentário sobre a obra a descreve bem.

 

A música “Que estou fazendo” é produto da época da ditadura militar.  Tomei conhecimento do poema do Rev. João Dias de Araújo e fiquei muito impressionado pela firmeza das suas palavras.  Pregava um cristianismo engajado na luta contra as injustiças, distante da religião enclausurada nos templos, que busca a ‘salvação da alma’ e ignora o corpo, especialmente os corpos dos desfavorecidos.  Decidi musicá-lo, optando por uma seqüência harmônica barroca num ritmo brasileiro, o baião.

 

Esse hino passou a ser cantado em diversas igrejas do Brasil - de presbiterianos a luteranos - e entrou em nosso HCC no início dos anos 1990.

Mas vários evangélicos brasileiros se recusaram a cantá-lo. Crente não pode cantar isso. Não é hino de adoração. Não tem letra condizente com a Bíblia.

Preciso dizer que discordo, concordo e discordo.  Respectivamente.

Vamos lá da última para a primeira.

§ A letra tem ampla base bíblica.  Os profetas do AT tiveram suas mensagens absolutamente recheadas de conteúdo com apelo a justiça e engajamento social (confira por exemplo Am 5:24 / 8:4-18 e Mq 6:8).  Também importante destacar que o objetivo expresso na Lei é para que não haja pobres entre vocês (Dt 15:4-5).

Mais significativa, porém, é a interpretação que Jesus faz da profecia de Oseias (compare Mt 9:13 e 12:7 com Os 6:6).  Nas duas ocasiões, o Mestre enfatiza que é indispensável no relacionamento com Deus uma preocupação e misericórdia com os mais necessitados.  Um não pode acontecer sem o outro (1Jo 4:20-21 e Tg 1:27 / 5:1-6 entenderam bem as lições de Cristo para a igreja).

§ Realmente essa canção não é um hino de adoração.  Adorar é curvar-se, prostrar e submeter. Também é declarar a glória absoluta que pertence só a Deus (a cena dos anciãos diante do trono em Apocalipse capítulo cinco demonstra bem isso).

Na adoração e no louvor eu exalto e bendigo quem é Deus e o que ele faz na história - e isso eu não declaro com a letra da música.  Mas aqui já olho para o próximo ponto.

§ Todo crente não apenas pode, mas deve cantar assim.  A adoração cristã é voltada somente a Cristo.  Só que essa verdade não vai impedir que nossa fé nos leve a olhar na horizontal para aqueles que precisam ser alcançados pela força revolucionária do amor e das ações do evangelho.

Então o questionamento é bem pertinente e transformá-la em uma canção que me mova a um compromisso cristão que se assemelhe com o empenho do próprio Senhor tem que fazer parte de nossas liturgias.

Devo sim colocar minha fé e minhas práticas religiosas contra a parede:

 

Que estou fazendo se sou cristão?
Se Cristo deu-me total perdão?
Há muitos pobres sem lar, sem pão.
Há muitas vidas sem salvação.
Meu Cristo veio pra nos remir:
o homem todo, sem dividir.
Não só a alma do mal salvar,
também o corpo ressuscitar.

 

terça-feira, 16 de junho de 2020

ASSIM É O AMOR (parte 1)


O apóstolo Paulo insere em sua carta aos Coríntios um belo e fantástico poema sobre o amor (em 1Co 13).

Ali ele canta o amor verdadeiro, puro, sincero, despretensioso.  Ele se refere ao amor em sua forma essencial e usa a palavra grega ἀγάπη para indicar de que tipo de amor ele descreveria ali.

Só lembrando: (1) os gregos tinham diversos vocábulos que hoje traduzimos como amor em nosso vernáculo (já postei sobre isso - você pode acessar aqui); e (2) essa é a mesma palavra que João usa para descrever Deus em 1Jo 4:8.

No poema, Paulo começa afirmando que o amor assim não pode ser descrito em linguagem humana ou angelical, vai além do entendimento de ciência e mistério, não pode ser captado por fé nem expresso em profecia e transcende a ações caridosas.

Segue-se então uma lista de atitudes que podem ser reconhecidas nesse amor.  É como se o apóstolo dissesse: assim é o amor.

 

Paciente (μακροθυμεῖ) - esse verbo grego indica a ação de pacientemente mostrar-se tolerante e com perseverança nunca desistir, mesmo que isso provoque algum sofrimento.  Paulo descreve o fruto do Espírito com um adjetivo da mesma raiz em Gl 5:22.

Bondoso (χρηστεύεται) - a ação de ser gentil e estar disponível para servir os outros são características indispensáveis ao amor.  A Filemon (em Fm 1:11), Paulo usa um jogo de palavras a partir desse verbo para descrever a mudança na vida de Onésimo - de inútil para útil.

Não inveja (οὐnζηλοῖ) - uma atitude e sentimento negativo que o amor não pode demonstrar: ciúme, inveja, desejo de posse.  Em Gl 5:20 esse comportamento é descrito como obra da carne.

Não se vangloria (οὐ περπερεύεται) - esse verbo só aparece aqui no NT grego.  O sentido, no grego antigo, é de gabar-se, falar ou se comportar de maneira ostensiva e arrogante.  O amor nunca é assim.

Não se orgulha (οὐ φυσιοῦται) - no grego esse verbo descreve o ato de inflar ou soprar.  Daí, estar cheio de si mesmo, ser prepotente.  Uma das duras críticas que Paulo faz a Igreja de Corinto é que eles se tornaram orgulhosos - auto-suficientes - em sua própria fé e experiência (1Co 4:18-19).

 

Pelo visto, a riqueza do texto é grande, então decidi dividir a análise em partes.  Aqui estão listas as expressões de 1Co 13:4.

 

. Leia aqui a 2ª parte - 1Co 13:5-6

. Leia aqui a 3ª parte - 1Co 13:7-8

 

sexta-feira, 12 de junho de 2020

PRECISO FAZER LIVE?


Desde que a função de veículo prioritário para comunicação à distância foi ocupado pelo celular (os lusitanos preferem chamar o aparelho de telemóvel - eu gosto dessa palavra).

Mas... começando de novo ainda em português brasileiro.

Desde que a função de veículo prioritário para comunicação à distância foi ocupado pelo celular, a forma de trocar informação tem se modificado, não apenas via celular especificamente, mas de um jeito geral.

E nestes tempos de distanciamento necessário, novos hábitos, novas tendências e novos jeitos ganham espaço implacável.

Olhando agora para o aparelho é fácil observar como a comodidade caminhou nas mãos, via celular.

Primeiro se ligava e falava, depois migramos para o hábito de escrever as mensagens e o passo seguinte foi gravar um áudio e enviar (confesso que ainda tenho dificuldades com os áudios em minhas redes sociais).

Mas agora a tendência é fazer live.  Uma mistura de tudo isso aí no parágrafo anterior só que ao vivo (acho que no português europeu seria em direto).  Ou seja a transmissão é feita simultaneamente.

E, se já não me sinto muito à vontade com áudios, imagine quando me cobram:

— Você precisa fazer live!

Geralmente nesse ponto eu paro e penso antes de responder.  Não é que tenha algo contra as mídias modernas - estou nas redes sociais e mantenho ativa uma página na internet.  Também não é um problema falar diante de pessoas - como pastor e professor, o desafio do auditório se fez costumeiro.

— Então, por que não faz live?

— Então ...

Para falar bem a verdade, eu gosto da palavra escrita, sempre preferi.  Eu me sinto em casa e à vontade com o texto redigido.  É só uma questão de preferência pessoal mesmo.

Dizem que escrevendo se perde entonação e sotaque.  Além de não se ter o controle completo da mensagem que chega ao leitor pois ele pode atribuir ênfases e significados múltiplos e diversos.

É verdade.  É um risco.  E por isso, um desafio.

Mas gosto do desafio.  Gosto da magia da escrita e do efeito gráfico.  Gosto também da briga com a palavra, do garimpo do léxico e das nuances da sintaxe.  E isso é coisa que exige tempo, paciência, engenhosidade e revisões intermináveis que só a escrita pode ofertar.

Assim, um texto nunca fica pronto até que um leitor qualquer (ou específico) o tome e o decifre.  Por isso, gosto particularmente de oferecer uma possibilidade de caleidoscópio de significados a quem me lê.  Acho que é essa alquimia que me mantém escrevendo mesmo num mundo onde gradualmente menos se lê e mais se ouve e vê.

— Será que estou ficando anacrônico?

— Preciso mesmo fazer live?

 

terça-feira, 9 de junho de 2020

SOBRE A SERPENTE


Tem uma frase minha que uso sempre quando busco ler e entender a Bíblia: "Interpretar a Bíblia literalmente traz mais problemas que lições".  Assim, entendo que toda leitura bíblica deve ser contextual.  Isso é mais honesto com o texto e sempre será rico em ensinamentos.

Mas devo confessar que trabalhar o texto assim dá muito mais trabalho.  Talvez seja por isso que muitos não querem essa trilha.

Depois de toda essa introdução, vamos a sua questão

O seu ponto foi sobre a serpente e a sua participação do episódio da queda do primeiro casa.  Vamos entender:

Em primeiro lugar, a palavra em hebraico usada em Gn 3 (נחש) é um substantivo comum e a tradução correta é simplesmente serpente ou cobra.  Essa palavra aparece em vários outros lugares do AT Hebraico (como no Sl 58:4 por exemplo).

Isso já nos dá uma pista de que o autor sagrado não estava querendo se referir a um animal específico mas a espécie como um todo.

Se fôssemos extrapolar um pouco, não seria exagero dizer que o Gênesis está opondo a raça humana - obra preferencial de Deus (representada no casal) - com o mundo bruto (representado na serpente).  Mas aí é extrapolar o texto.

Voltemos:

No texto a serpente é descrita apenas como o mais astuto entre os da criação.  E o autor parece não está muito ocupado com ela.

Já que falamos em leitura contextual, é bom lembrar que o povo de Israel sempre esteve vizinhando a outros povos que tinham na serpente a figura de seus ídolos.  Então é fácil entender de onde o autor tirou a idéia.

A serpente é a própria possibilidade do mal, a tentação para deixar de ouvir Deus e se curvar aos desejos imediatos.  É ela que faz a proposta para relativizar o Criador e os seus ditames.

Então, indo direto a questão, não parece que o autor de Gênesis compreendia a cena como uma possessão ou coisa parecida.  Seria bem estranho naquele contexto, e provavelmente não faria nenhum sentido para os seus primeiros leitores.

E antes que fique grande demais essa resposta, deixe-me fazer apenas mais uma citação bíblica: Em Ap 12:9 João fala do grande dragão como sendo a serpente, chamada de diabo ou satanás.

Esse texto ajuda na compreensão pois é de Apocalipse

O que posso ver aqui é exatamente a confirmação do entendimento trazido do AT.  João usa a figura (metáfora?) da serpente para descrever o grande opositor da mulher e do seu filho.  Aqui não se fala em possessão ou influência.  A relação é direta: um é o outro.

Entendo que Apocalipse deve ser lido assim: verdades espirituais expressas em linguagem figurada.

Assim aqui eu tenho um padrão bíblico que pode servir de chave para entender o primeiro e o último livro: o Acusador, representado na figura que serpenteia, sempre vai procurar trazer dúvida, morte e destruição para os que estão sob o cuidado e proteção divina.

Mas sempre haverá vitória no sangue do Cordeiro (Ap 12:10-11).

 

sexta-feira, 5 de junho de 2020

OITO DIAS DEPOIS

Tomé, apelidado de Dídimo, ficou conhecido como o apóstolo que duvidou.  Sobre ele, não são muitas as citações nos Evangelhos.  Por isso também dali não se poder extrair muita informação.

Nos sinóticos Tomé só aparece citado junto a relação dos doze e João faz referência a ele em quatro ocasiões apenas: na cena da ressurreição de Lázaro (em 11:16), quando pergunta pelo caminho (em 14:5), no episódio da dúvida (de onde vem a sua fama - em 20:24-29) e na pesca maravilhosa (em 21:2).

Mas, antes de questionar sua dúvida, vamos notar a sua ausência.  João diz que já pela tarde daquele dia da ressurreição - o primeiro da semana - Jesus apareceu aos seus discípulos que estavam trancados, com medo.  Naquela reunião Tomé não estava presente.

Com os corações já mais aliviados, os discípulos encontraram depois Tomé e lhe contaram o que tinha se passado naquele encontro com Jesus.  E a atitude de Tomé foi razoável: se eu não ver e tocar...

 

OITO DIAS DEPOIS

 

João então vai nos dizer que oito dias depois - ou seja, no primeiro dia da semana seguinte (dia que passamos a chamar de domingo) - Jesus novamente veio se encontrar com seus discípulos, e agora Tomé estava presente.

Aqui então eu quero me imaginar sentado naquela sala e observando a cena, as circunstâncias e os personagens.  Peço que me deem essa liberdade.

Vai ser interessante.  Sente-se ao meu lado.

O ambiente já era diferente da semana anterior.  Oito dias tinham se passado desde que eles viram Jesus ressurreto.  Agora a conversa já fluía mais amena, o clima mudara de temor para expectativa da presença, e disfarçado era até possível perceber algum sorriso insistente: o Senhor vive.

Lá num canto, Tomé desconfiado aguardava em silêncio para ver o que aconteceria.

— Será!?

Quantas ideias fervilhavam na sua cabeça? Quantas outras dúvidas razoáveis? Quantas lembranças e possibilidades?

Mais um detalhe me chama a atenção.  Não há registro de repreensão dos colegas de discipulado ao duvidoso Tomé.  Não há reprimenda, nem julgamento, nem exclusão.

Ali todos sabiam que em um outro momento fraquejaram, duvidaram e se esconderam.  Nenhum tinha moral alguma para cobrar nada daquele que esteve ausente oito dias antes.

E eu começo a me sentir em casa nesse salão.  Onde todos sabem e assumem suas fraquezas, cria-se um lugar de perdão e acolhimento.

Tomé duvidou, Pedro negou, Judas traiu.  Houve medo é covardia.  Mas todos os que quiseram voltar à comunhão foram bem vindos.

Assim estava se formando a igreja de Cristo.  E nessa nascente comunidade não havia nem juízes nem algozes, apenas companheiros de caminhada: pecadores arrependidos alcançados pela graça inexplicável da Cruz.

E foi então nesse ambiente e aconchego que Jesus chegou novamente.  Deus gosta desse tipo de gente e lugar (o Sl 51:17 já cantava isso).

Eu, lá no outro canto, apenas observo que Jesus, ao aparecer, depois da saudação habitual e coletiva, vai ao encontro em particular de Tomé.  Sua voz é mansa e agradável.  Ele não cobra ou lança em rosto (Acusador é o Outro!).

— Filho olhe para mim e me toque.  Sou eu mesmo.  Estou vivo e eu vim aqui para conversarmos.  Para mim você não é o covarde, é o alvo do meu amor eterno.

Então, oito dias depois de deixar o túmulo vazio, Jesus recebeu a rendição prostrada de um discípulo amado: Meu Senhor! Meu Deus!.

E minha vontade agora é apenas me juntar a Tomé nessa adoração.

 


terça-feira, 2 de junho de 2020

Teólogos Escolásticos

Costumamos chamar de Idade das Trevas os anos da Idade Média européia – principalmente os primeiros anos – quando a produção e o fomento de cultura e conhecimento ficaram mais escassos e seriamente restritos e dominados pelos círculos religiosos.

Mas esse período não foi de completa ausência reflexão e debate, e em geral, damos o título de ESCOLÁSTICOS aos pensadores deste período.  O termo vem lá do grego: σχολαστικός – aquele que pertence a uma escola, daí instruído, sábio.

O principal teólogo deste período foi Tomás do Aquino (Itália, 1225-1274), cuja obra mais proeminente – Summa Teologicæ – balizou o corpo doutrinário católico e sua dogmática.

Na lista abaixo, procurei apontar alguns dos pensadores cristãos que contribuíram com a reflexão teológica nesse período escolástico, mas que não estão entre os mais conhecidos hoje em dia. 

 

João Scoto Erígena (Irlanda, 810-877) –

ü      Existe uma predestinação benévola em relação à criação pois tudo é controlado por Deus.

ü      A natureza é a totalidade das coisas, existentes e não existentes, daí se dividir em quatro partes: 1. a natureza não criada, 2. a natureza que foi criada e que cria, 3. a natureza que foi criada mas não cria, 4. A natureza que nem foi criada nem cria.

ü      O homem é o microcosmo e Deus é o macrocosmo do universo.

ü      Universalista, afirmava que todo homem caído no pecado seria redimido pelo Logos em sua encarnação quando o homem – pela força iluminadora do Logos divino – sendo reabsorvido em sua essência divina.

Avicena (Pérsia, 980-1037) –

ü      Opunha-se a atomismo afirmando que nada existe de absoluto dentro do mundo finito.

ü      Deus é um ser perfeito e necessário, completo e absoluto.

ü      A criação se fez necessária e o mal é um acidente da existência.

ü      Os profetas adquiriram a capacidade de entrar em contato com a inteligência superior – Deus, recebendo o conhecimento de verdades específicas.

Salomão Ibn Gabirol, conhecido como Avicebron (Espanha, 1021-1058) –

ü      Todas as substâncias terrenas e espirituais combinam força e matéria.

ü      O mundo procede da unidade divina por meio de uma série de emanações mediadas pela própria vontade divina.

ü      Deus, em sua verdadeira natureza, permanece acima da compreensão humana.

ü      A vida humana não faz sentido sem que se relacione com Deus mediante o conhecimento e a devoção, o que conduz a dominação da natureza animal voltada para a sensualidade e aproxima da natureza divina.

Anselmo de Cantuária (Itália, 1033-1109) –

ü      Criou o argumento ontológico em duas formas: 1. Deus é a realidade maior que podemos conceber, 2. A não existência de Deus é uma contradição de termos.

ü      Há uma diferença entre o pensamento e a realidade pensada pois o que existe é apenas o conceito do ser último.

ü      O ser humano não chega a Deus por meio de especulações mentais, mas pela iluminação divina e pela experiência mística que comunica ao homem a verdade.

ü      Ao morrer pelos homens, Cristo proveu  uma satisfação proporcional à culpa humana, uma dádiva de si mesmo, que requer uma recompensa proporcional: a salvação do homem.

ü      Defendeu o realismo metafísico em dois mundos: a realidade material do mundo físico e a realidade espiritual do mundo metafísico.

ü      A ética deve der fundamentada no amor.

Pedro Abelardo (França, 1079-1142) –

ü      Procurou desenvolver vários conceitos fora do cotidiano da teologia dogmática.

ü      Introduziu o método dialético na Teologia tentando combinar autoridade e razão, fé e erudição.

ü      Fé e razão não podem contradizer-se pois partem da mesma fonte – a verdade divina.

ü      Ocupou-se da questão das fontes cristãs afirmando que a Bíblia é infalível, enquanto que os pais eclesiásticos podem errar.

Maimônides (Espanha, 1138-1204) –

ü      Mesmo sendo judeu influenciou bastante a teologia cristã, tentando conciliar o pensamento judeu com a filosofia aristotélica.

ü      O mundo foi criado a partir de uma agência divina e por isso não é uma matéria eterna.

ü      Deus é radicalmente diferente do mundo e por isso só podemos afirmar – pela razão – o que Deus não é.

Boaventura de Bagnoregio (Itália, 1221-1274) –

ü      A filosofia culmina no misticismo, que se constitui sua mais elevada expressão, logo, razão sem fé sempre cai no erro.

ü      Todas as pessoas, por mais simples que sejam têm uma consciência e nesta consciência está implícito um conhecimento de Deus.

ü      Para provar a existência de Deus seguiu os argumentos de Anselmo.

ü      Há no ser humano um elemento ético que deve ser cultivado pelo busca da felicidade.

ü      As constantes alterações do mundo material não nos permitem encontrar a verdade pela simples observação.

João Duns Scotus (Escócia, 1266-1308) –

ü      Não deixou obra escrita, mas suas idéias foram compiladas pelos seus alunos.

ü      O amor de Deus ocupa o lugar central da teologia.

ü      O homem tem intelecto, porém este intelecto é inferior ao de Deus por está limitado pela natureza biológica;

ü      Ao nascer o ser humano é uma tabula nuta (placa nua) na qual serão escritos os conhecimentos acumulados ao longo da vida.

ü      Aceitou a autoridade da igreja, mas somente no campo das doutrinas.

Guilherme de Ockham (Inglaterra 1288-1347) –

ü      A partir de uma leitura própria de Aristóteles, tentou simplificar a filosofia  escolástica negando a existência de essências intencionais, a distinção de essência e existência e entre intelecto ativo e intelecto passivo.

ü      No campo da ética afirmou que a noção de certo e errado depende da vontade de Deus.

ü      Acreditou na realidade e confiabilidade das funções intuitivas humanas.

ü      Deus não pode ser conhecido por razões ontológicas, somente pela revelação.

ü      Foi um precursor da democracia afirmando a liberdade da vontade humana.