segunda-feira, 29 de agosto de 2022

O RICO, O CAMELO E A AGULHA

 

Estou pensando em escrever um ensaio sobre como Jesus lidou com as questões de pobreza e riqueza em seu ministério terreno, e como a igreja que o seguiu também tratou do tema.

Ainda estou na fase de pesquisa.  Comecei com o episódio do encontro de Jesus com o jovem rico (passagem bem conhecida e que foi registrada nos Sinóticos em Mt 19; Mc 10 e Lc 18).

Sei que este é um tema por demais complexo e por isso estou me detendo um pouco nessa fase da pesquisa para fundamentar algumas conclusões.  Então, como o trabalho parece que ainda vai demorar, vou compartilhar aqui alguns apontamentos iniciais (também na esperança de que comentários e contribuições me ajudem nessa empreitada).

Aqui, em destaque, a citação do fraseado sobre a dificuldade de um rico alcançar o Reino de Deus, registrado assim por Lucas (18:25):

 

É mais fácil um camelo entrar no furo de uma agulha
que um rico entrar no Reino de Deus!

 

Vamos lá.  Primeiro algumas análises de vocabulário da passagem, depois impressões iniciais do texto (vou evitar, por enquanto, citações de interpretações que tentam dar uma “ajeitada” na exegese!).

 

Antes, o contexto:

Jesus foi procurado por um personagem (não há citação do nome), indiretamente reconhecido como sendo jovem e rico, e que desejava saber o que fazer – como conquistar – para ter direito ao Reino.  Diante da proposta do Mestre e da recusa do interessado em seguir as instruções, Jesus citou a máxima que agora estudamos.

 

ANÁLISE DE VOCABULÁRIO –

 

Camelo (no grego κάμηλος e no hebraico גמל) – animal de montaria, típico do oriente médio (não há distinção nos termos para camelo e dromedário). 
No NT Grego há seis citações do animal – todas nos sinóticos.
No AT Hebraico ocorre mais de 60 vezes, sendo a primeira em Gn 12:16.

 

Furo (no grego τρύπημα – variante τρῆμαe no hebraico נקב) – literalmente, um furo ou buraco.  A forma como era referida inclusive o orifício na agulha onde se passava a linha para costura. 
No NT Grego a palavra só é citada nesta passagem.
No grego moderno é usada tanto no sentido médico-cirúrgico de perfuração, como num sentido geral.  Por exemplo: no furo que se faz para a aplicação de piercings.

 

Agulha (no grego βέλος, βελόνη e no hebraico מחט) – no léxico indica dardo, seta ou flexa.  Daí, por extensão, qualquer objeto com ponta afiada.
Aqui em Lucas é a única citação do termo nessa forma no NT Grego (em Ef 6:16 há um termo derivado que traduzimos como dardos).
Os sinóticos Mateus e Marcos usam outra palavra grega na mesma narração – ῥαφίς (do verbo ῥάπτω – costurar).
Os gregos modernos se referem com essa palavra ao peixe-espada.

 

Quanto ao verbo entrar (εἰσέρχομαι – aqui no infinitivo aoristo ativo), o adjetivo rico (πλούσιος) e a expressão Reino de Deus (βασιλεία τοῦ Θεοῦ), creio que não há muitas questões.

 

IMPRESSÕES INICIAIS –

 

O Mestre Jesus sempre foi brilhante em sua forma de falar, ensinar e inculcar suas lições.  Aqui eu consigo compreender claramente o uso do recurso de linguagem que chamamos de hipérbole – o exagero.

No uso desse recurso, Jesus, bem como seus ouvintes, deveria conhecer o Talmude Babilônico que citava a expressão: “como um elefante no fundo de uma agulha” para exemplificar algo implicitamente impossível.  Então ele deve ter adaptado o aforismo para se referir ao camelo, o maior animal do cotidiano daquele povo.

Assim, Jesus indicou a completa incoerência entre o enorme camelo e o pequeno furo onde passa a linha para a costura.  Da mesma maneira é completamente incoerente esperar que um rico possa conquistar o Reino de Deus. 

Chega a ser loucura pensar nisso!

Mas o Reino de Deus que Jesus veio instaurar seria um Reino de incoerências e impossibilidades, pois Deus – o Rei – é quem faz acontecer o impossível (minha base está na citação a seguir em Lc 18:27).

 

(Na imagem lá em cima,
uma gravura ilustrando a diferença entre camelo árabe e o camelo bactriano,
publicada originalmente no livro The New Student's Reference Work
de C.B. Beach em 1914
– fonte: wikipedia.org)

 

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O HOMO RELIGIOSUS

 

Deixe-me tentar compreender melhor como o humano se faz homo religiosus diante do mundo.  Ao dominar a autoconsciência, o ser humano se vê diante do cosmo que mais lhe parece o caos.  Desta percepção brotará o primeiro estímulo do que virá a ser a sua essência religiosa. 

(...)

Defrontando-se com a realidade imensa da existência que por si só não faz sentido, nem lhe aponta saídas, o ser humano se sente pequeno, fraco e incapaz de transformar o deserto num jardim, o caos num cosmo, a dúvida e a incerteza na confiança e promessa, o ser humano se faz religioso.  Em outras palavras, a sua inconteste e inevitável descoberta de si mesmo e do mundo que o cerca transforma este ser de animal apenas em um homo religiosus: ser humano significa necessariamente ser religioso.  A vida não pode ser somente isto.  É assim que a admiração se transforma em espírito religioso: o maior-que-eu/além-de-mim eu não tenho nem controlo, mas eu tenho a crença.  A poetiza brasileira Clarice Lispector exclamava: "Obstinada, eu rezo.  Eu não tenho o poder.  Tenho a prece".

Desta forma o ser humano se constitui enquanto ente em busca do outro que possa lhe dar sentido e completude diante de um cosmo que não lhe transmite a sensação de contiguidade. (...) Culto e adoração para o ser humano então é a garantia de respostas a suas indagações últimas e a certeza de que não será tragado pela existência caótica.  Na religiosidade busca-se colocar ordem no caos, apoiando-se nos deuses e crenças para que estes lhes sejam favoráveis. 

(...)

Outra observação teórica que posso fazer aqui é a partir das colocações do filósofo romeno Mircea Eliade.  No seu texto sobre O Sagrado e o Profano Eliade usou a expressão homo religiosus para descrever o ser humano, ou seja, um ser determinado acima de tudo pela sua religião e seu senso de adoração.  Na introdução do texto o próprio Eliade observou: "o sagrado e o profano constituem duas modalidades de ser no mundo, duas situações existenciais assumidas pelo homem ao longo da sua história".  E mais adiante, tratando mais claramente sobre como o ser humano encara a existência: "seja qual for o contexto histórico em que se encontre, o homo religiosus crê sempre que existe uma realidade absoluta, o sagrado".  O sagrado determina o ser humano, dando-lhe contornos dos quais ele não tem como escapar.  Estes contornos moldam o ser tanto na sua autocompreensão como nas suas tomadas de decisão.  Ou seja, esta visão faz do ser humano alguém que na sua existência está condicionado pelo transcendente. 

(Extraído do livro DE ADÃO ATÉ HOJE – um estudo do Culto Cristão)

 

 


O livro DE ADÃOATÉ HOJE – um estudo do Culto Cristão traz um estudo teológico sobre o Culto Cristo e está disponível no:

Clube de autores
amazon.com

 

Conheça também outros livros meus:
TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
PARÁBOLA DAS COISAS

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

O EVANGELHO DE LUCAS

 



Os três primeiros evangelhos que encontramos no Novo Testamento procuram apresentar a figura histórica de Jesus Cristo partir de um mesmo ponto de vista, por isso nós o chamamos de sinóticos. 

Mas mesmo olhando de um mesmo ângulo, cada um dos evangelhos procura destacar um aspecto da vida e ministério de Cristo.

Lucas é um deles.  Embora tenha realmente muitos pontos em comum com Mateus e Marcos, mas ele é um evangelista próprio. 

Numa primeira olhada no texto é fácil detectar diferenças significativas.  Dos três, Lucas é o mais minucioso e baseia seu Evangelho nas narrativas.  Ele demonstra entender que Deus se revelou na história e será contando-a que Lucas nos apresentará Jesus, o filho de Deus.

Por outro lado, também se deve destacar nesta introdução que Lucas é alegre e inclusivo.  Ele sempre registra cânticos (veja por exemplo os cantos de Maria e Zacarias no primeiro capítulo ou a citação da alegria dos setenta ao regressarem da missão no capítulo nove). 

O Evangelho também se ocupa com os que são social, moral ou religiosamente excluídos (ele observa que Jesus tomou para si as palavras da profecia: compare Is 61:1-2 com Lc 4:18-19).

Quanto ao autor, ele mesmo não se apresenta – apenas dedica seu trabalho ao excelentíssimo Teófilo (veja Lc 1:3).  Por tradição, atribui-se a Lucas, o médico amado, companheiro de Paulo a autoria do texto (vá a citação de Cl 4:14). 

Lucas não foi testemunha ocular do Jesus histórico e ele próprio reconhece isso, mas a partir de um meticuloso trabalho de pesquisa e documentação de tais testemunhas compôs seu Evangelho, deixando-nos um relato fiel para que tenhamos plena certeza das verdades ali narradas (leia Lc 1:4).

(A partir da introdução da lição 01 da revista “Lucas” – Editora Sabre)


terça-feira, 9 de agosto de 2022

PARA QUE FOI ESCRITA A BÍBLIA?

 


Esta pergunta é fundamental.  Sem conhecermos o objetivo específico deste Livro, ele se torna apenas mais um escrito em nossa biblioteca.  É preciso assim saber exatamente para que este livro foi escrito, preservado, transmitido e chegou até nós.

Deixe-me apresentar duas respostas tiradas do próprio texto bíblico.

1.  Na segunda carta a Timóteo é dito: "Toda Escritura é divinamente inspirada e proveitosa para ensinar, para repreender, para corrigir, para instruir em justiça; para que o homem de Deus seja perfeito, e perfeitamente preparado para toda boa obra" (3:16-17). 

Ela é proveitosa para ensinar.  Tudo que eu preciso saber para viver aqui eu encontro na Palavra de Deus.  Também é proveitosa para repreender.  Tanto para corrigir nossa rota quando nos desviamos e perdemos o rumo certo de nossa vida, como para nos disciplinar em nossos erros e tropeços para que não sejamos apanhados em falhas.  A Bíblia nos mostra a justiça e correção divina; o seu plano perfeito para a humanidade em geral e para minha vida em particular.  E isto tudo com apenas um objetivo: para que o servo de Deus seja perfeito como Deus o é.

2.  O segundo texto a destacar está em João 20:30-31.  "Jesus, na verdade, operou na presença de seus discípulos ainda muitos outros sinais que não estão escritos neste livro; estes, porém, estão escritos para que creiais que Jesus é o Cristo, o Filho de Deus, e para que, crendo, tenhais vida em seu nome". 

Aqui é dito de maneira direta o objetivo das Escrituras.  A Bíblia foi escrita para que através dela pudéssemos crer que o homem Jesus é o ser divino – Filho de Deus – que se encarnou por amor da humanidade; e crendo nisto todos nós tenhamos a vida em seu nome.

 

terça-feira, 2 de agosto de 2022

PRELEST – uma ilusão espiritual

 


Pretendo considerar uma palavra relacionada à Teologia e a fé: PRELEST.  Traduzindo direto da língua russa (ПРЕЛЕСТЬ – com a ajuda do Google) a palavra significa “charme”.  Esse é um termo usado pela Teologia Ortodoxa oriental para indicar uma ilusão, fraude ou engodo espiritual.

(Procurei no Novo Testamento em russo essa palavra e não encontrei.  Com certeza, meu inexistente conhecimento da língua russa não me ajudou e, consequentemente, minha pesquisa na internet não me trouxe citações.)

Vários bons autores ortodoxos escreveram sobre esse tema e aqui eu quero destacar as reflexões do hierarca russo Santo Ignatius Brianchaninov, que escreveu bastante sobre o prelest.  Segundo ele:

― O engano espiritual é o estado de todos os homens sem exceção, e foi possível pela queda de nossos pais originais.  Todos nós estamos sujeitos ao engano espiritual. 
― A consciência desse fato é a maior proteção contra ele.  Da mesma forma, o maior engano espiritual de todos é considerar-se livre dele.

― O mundo está em um estado de engano espiritual e manifesta uma afinidade por aqueles que estão no mesmo estado. Mas despreza e rejeita aqueles que servem à Verdade...

Em linhas gerais, o prelest – ou estado de engano espiritual – acontece quando o ser humano, mesmo com boa intenção e buscando se aproximar de Deus e agradá-lo, se vê enredado por ilusões de procedência diabólicas que são tidas como verdadeiras.  Assim, o fiel acaba por aceitar a mentira como se fosse verdade.

Segundo Santo Ignatius Brianchaninov, dois são os tipos mais comuns de engodo em que o prelest se manifesta:

(1) Imaginação (Воображение).  Nesse caso, a pessoa floresce sua imaginação, sob influência sobrenatural, e tem visões de Jesus, ou de coisas espirituais, sem que tenha se arrependido ou “se purificado de suas paixões”.  Assim, essas visões, ou experiências de ser alcançado pelo sagrado, nada mais são que ilusões espirituais – não sendo verdadeiras, mesmo que tenham acontecido em momentos de devoção sincera.

(2) Autoconceito ou presunção (самомнение).  É aquela falsa ideia de retidão baseada na realização de disciplinas espirituais de piedade e virtudes supostamente dadas por Deus que faz com que se creia ter adquirido “méritos” junto a Deus.  Se no primeiro tipo em geral se confunde o sobrenatural com o divino, aqui a ilusão é mesmo espetacular e consiste em pensar nos próprios sentimentos religiosos como sendo sentimentos santos e divinos quando se ainda está completamente impróprio para eles.

 

Ambas as possibilidades de prelest indicam um certo padrão:

     a. A sinceridade espiritual;
b. Inconsistência entre a vida de busca de santidade e falta de arrependimento e quebrantamento;
c. Percepção equivocada da realidade espiritual;
d. Confiança nos sinais exteriores de santidades;
e. Aparência de cristianismo;
f. Apego à mentira e à ilusão em detrimento da verdade bíblica e divina.

Em todo caso, a melhor advertência ainda é a que nos foi dada por Tiago em sua epístola canônica:

Tornem-se praticantes da Palavra e não apenas ouvintes que se enganam a si mesmos.
Tg 1:22

Na imagem lá em cima: 
óleo sobre tela do russo Nikolai Nikolaevich Ge, 
intitulado Аэндорская волшебница (A Feiticeira de Endor), 
pintado em 1856. 
Atualmente na Galeria Estatal Tretyakov, Moscou.