Esse é, realmente, daqueles versículos que aparece
em traduções e interpretações as mais diversas – algumas bem conflitantes!
Para trazer luz de entendimento e ter uma boa
explicação dessas palavras do Evangelho quero propor um roteiro de exegese: (1)
trabalhar o texto original; (2) examinar o contexto; (3) consultar comentários;
e (4) oferecer uma compreensão bíblica para a passagem.
Trabalhando o texto original –
O fraseado em grego (Textus Receptus 1550) do
texto de Mt 11:12 diz o seguinte:
Ἀπὸ δὲ τῶν ἡμερῶν
Ἰωάννου τοῦ βαπτιστοῦ ἕως ἄρτι ἡ βασιλεία τῶν οὐρανῶν βιάζεται καὶ βιασταὶ
ἁρπάζουσιν αὐτήν.
O verso é composto de um palavreado bem
comum. Mas três expressões chamam a
atenção e devem ajudar a esclarecer o seu sentido:
Βιάζεται – do verbo βιάζω – na voz ativa: eu
uso de força; na voz passiva: eu sofro violência. Aqui no Presente do Indicativo Médio /
Passivo – 3ª do singular. A única outra vez
que essa palavra aparece no NT está em Lc 16:16 em um contexto e referência similar.
Βιασταὶ – a única ocorrência do substantivo
βιαστής no NT é aqui nesse verso. A etimologia
parte da expressão βια + στής – “violência” + desinência de agente = “o
violento”.
Ἀρπάζουσιν – do verbo ἁρπάζω – eu arrebato / pego
com força. Aqui no Presente do
Indicativo Ativo – 3ª do plural. Mateus usa
o mesmo verbo na parábola para dizer que a semente/mensagem foi arrancada do
coração (em 13:19).
Num trabalho de tradução literal:
“Desde os dias de
João, o Batista até agora, o Reino dos Céus sofre violência e os violentos [tentam]
pegá-lo pela força.”
Examinando o contexto –
O contexto anterior onde lemos o texto em questão diz
que os discípulos de João tinham questionado Jesus sobre sua messianidade (Mt
11:1-6) e, aproveitando a ocasião, Jesus teceu elogios ao Batista (versos 7-11).
Continuando a expor seus argumentos, Jesus falou da
circunstância de seu projeto de Reino e de como alguns vinham tentando subvertê-lo
usando de força e truculência (aqui é a citação de Mt 11:12).
Detalhe: a prisão do próprio João já foi uma
demonstração do uso da violência política e religiosa para tentar subjugar os
que se comprometem com o Reino aos que querem manter o establishment.
E a seguir, o Messias concluiu que os ditames da
Aliança antiga – a da Lei e dos Profetas – perduraram até João (verso 13), mas
que a partir dali um novo modelo estaria sendo estabelecido (verso 14).
Consultando comentários –
Dando uma olhada aqui, a maioria dos comentadores
do texto de Mateus o fazem comparando com a citação paralela de Lucas (Mt 11:12
e Lc 16:16). É provável que faça sentido,
pois independente de os textos se referirem ao mesmo episódio ou não, os seus
conceitos se complementam.
Wayne Partain e Bill H. Reeves no Comentario Al
Nuevo Testamento afirmam que
É possível que possamos obter o
significado completo dessa difícil frase reunindo as lembranças de Lucas e
Mateus. O que Jesus pode ter dito é: «Meu Reino sempre sofrerá violência; sempre haverá homens
selvagens que tentarão destroçá-lo, assaltá-lo e destruí-lo; e por isso, só
poderá entrar no Meu Reino aquele que desesperadamente o levar a sério, só
aquele a quem corresponda a violência da sua consagração total e vença a
violência da perseguição.» Bem pode ser que esta palavra de Jesus
tenha sido originalmente tanto um aviso da violência que recairia sobre os
seguidores de Jesus quanto um desafio a se entregarem com uma consagração ainda
mais forte que a violência.
Oferecendo uma compreensão bíblica –
Ainda enxergo que essa explicação finda
limitada. A mim me parece que Jesus aproveitou
o contexto da brutalidade da prisão de João e o fato de que os religiosos
apoiaram as atitudes de Herodes (mesmo que indiretamente) por ele – João – propor
uma visão de Reino diferente da expectativa deles. Tais líderes queriam um reino que se opusesse
ao domínio romano para voltar a ter o controle social, religioso e político da
Judeia.
Para Jesus, essa mentalidade terrena, local e mundana
daquele projeto de Reino, mesmo que tendo suporte na antiga Aliança, era uma
apropriação indevida (violenta) do que o Senhor havia pretendido com as
promessas a Israel.
Ou seja, já trazendo para nós hoje: para esses
“violentos” – os que detém poder político e religioso e até se acham
legitimados pelo discurso cristão evangélico – o Reino pode ser estabelecido
pelo uso da força, intimidação ou coerção.
O que Jesus ensina é que esse tempo já findou. Observe a afirmação do autor de Hebreus: a ordenança
anterior é revogada, porquanto era fraca e inútil (Hb 7:18).
O Reino que Jesus está propondo agora é baseado na
graça e na liberdade. Além de que, o próprio
Jesus afirma que o seu Reino não é desse mundo (Jo 18:36): seus valores e
prioridades, logo também seus critérios de adesão e defesa, não devem ser nos
mesmos padrões violentos (considere também Jo 14:27).
Assim,
os que propagam o Reino por violência, armas, intolerância e brutalidade
certamente não estão alinhados com o Reino de amor para o qual fomos
transportados (tenho em vista Cl 1:13).