sexta-feira, 31 de julho de 2020

EU NÃO PRECISO DOS SEUS BOIS

 

Um belo Salmo de Asafe descreve o Senhor Deus soberano presidindo a sua assembleia solene:

 

"O Senhor, o Deus Poderoso, convocou a humanidade.  
Ele convoca os céus e a terra
"
 (Sl 50).

 

Atributos grandiosos e singulares de Deus estão cantados de maneira exuberante em todo o Salmo; na segunda parte (versos 7 a 15), porém, quando o salmista dá voz poética ao próprio Deus, é que podemos perceber quem é o Senhor e como somos distintos dele.

Descrever Deus é sempre logicamente complicado, bem como nossa relação com ele.  Deus é amor (1Jo 4:8) e fogo consumidor (Hb 12:29).  E diante do Senhor não se pode achegar de mãos vazias (Ex 34:20), mas somos convidados a dele receber sem dinheiro e sem preço (Is 55:1-3).

Mas essa ambiguidade é apenas aparente, e Asafe aponta com maestria inspirada quem é o Soberano que rege a solene reunião e como o cultuamos.

Antes de prosseguir, deixe-me lembrar de que no ambiente do salmista a essência do culto consistia no sacrifício de animais em oferta ao Senhor.  E os outros elementos, como a música e os recitativos, apenas ornavam o momento do holocausto.

Vamos então atender à convocação para comparecer diante da assembleia e ouvir a demanda divina, conforme salmodiado.

Tudo começa com a apresentação das credenciais daquele que está demandando a adoração: "Eu sou Deus.  O seu Deus!" (verso 7).  Deus é o que é (leia Ex 3:14 e Is 44:6).

Ele requer adoração pelo que ele é em sua absoluta e íntima essência.  Não há necessidade de outros motivos alheios ao seu próprio ser e existência para que me prostre em oferta e culto.

Segue-se a reprimenda.  Aqueles cultuantes entenderam tudo errado.  Todo o ritual do culto e do holocausto não era uma finalidade em si mesmo.  A adoração não consistia em prover Deus ou alimentá-lo com seus víveres.

O Senhor nem só não tem carências para que precise ser suprido como também ele mesmo é o possuidor de tudo que existe (versos 9-13).  Ele é o criador e dono de tudo e estabeleceu um povo para seu louvor exclusivo (vá ao Sl 24:1 e a Is 43:21).

Quando nos achegamos ao nosso Deus em adoração não o fazemos por que ele seja um coitadinho e precise nas minhas ofertas.  Meus esforços ou minhas ofertas nada acrescentam a um Deus que já é completo em si mesmo.

E nesse ponto parece escorrer uma pitada de ironia bem humorada - alegria e bom humor também são características divinas essenciais.

— Eu conheço cada passarinho silvestre!

— Todos os bichos da fazenda e do campo estão no meu inventário!

— Fala sério, se eu tivesse fome, você acha que eu lhe diria?

— Realmente, eu não preciso dos seus bois!

Então, por que e como devo ofertar o holocausto?  Em que deve consistir minha adoração? Qual a razão da minha liturgia e do meu culto? 

E a resposta está cantada ao longo do Salmo:

 

"Tragam a Deus oferendas de gratidão.
Aclamem a sua glória. Pois é isso que o honra.
E sua salvação será revelada a vocês
"
(Sl 50)

 

terça-feira, 28 de julho de 2020

ASAFE, O LEVITA

 

Pelo menos uma dúzia de salmos é atribuída a Asafe e a sua família.  Mas, quem foi esse personagem?

Para conhecê-lo melhor, vamos voltar um pouco na história (leia toda a narração a partir de 1Cr 16).

Depois de conquistar Jerusalém e a estabelecer como sua capital, Davi entendeu que deveria edificar um santuário para o Senhor e um lugar onde repousaria a Arca da Aliança.  Aconteceu que, por intervenção divina, não coube a ele a concretização do seu desejo.

Porém, mesmo não tendo autorização para construção do edifício, o rei Davi cuidou para que tudo estivesse providenciado e devidamente ordenado.

Davi não apenas juntou ouro, prata, ferro, pedra e madeira suficientes, como também contratou mão de obra especializada para os trabalhos de edificação do Templo.

Além disso, o mais importante no projeto deixado pelo rei Davi foi a própria ordenação do culto no Templo a ser construído.  A instrução real incluía a escala e distribuição de tarefas para sacerdotes e levitas.  Cada clã e família teria responsabilidades e incumbências específicas para com o serviço do culto.

Só lembrando: o rei Salomão (filho e sucessor de Davi) construiu o prédio sagrado e deu início ao culto no Templo em Jerusalém seguindo as especificações estabelecidas (veja a oração dedicação do templo e a resposta de Deus em 2Cr 7).

É nesse ponto que começamos a identificar quem foi Asafe, o levita.

Em 1Cr 25:1 o cronista registrou que Davi, juntamente com seu staff, ordenou que, dos descendentes de Levi, as famílias de Asafe, Hemã e Jedutum fossem escaladas para "profetizar com o acompanhamento de liras, harpas e címbalos".

Desses músicos, o texto destaca que Hemã e Jedutum eram do naipe das cordas (em instrumentos atuais seria o equivalente ao violão, guitarra e assemelhados - cuidavam de melodias e harmonias). Asafe, por sua vez, se destacou tocando címbalo (hoje seria o percussionista ou baterista da banda - confira 1Cr 16:5).  E todos cantavam.

Outra observação: às outras famílias de levitas cabiam outras tarefas na estrutura do santuário que não tinham relação necessariamente direta à música.

Asafe (seu nome em hebraico - אסף - significa ajuntador ou colecionador) foi o líder que mais se destacou entre os músicos e atuou como homem de confiança do rei.

Mais uma observação: Davi era músico e tinha a alma de artista, logo liderar equipes musicais durante a celebração ao Senhor era tarefa que se revestia da maior envergadura e responsabilidade.

Três temas mais destacados nos salmos de Asafe:

(1) O culto ao Senhor - é Deus que o preside e estabelece critérios para a adoração (veja, por exemplo, Sl 78 e 82).  Ele não precisa de nossa adoração (Sl 50), mas os adoradores são chamados a aclamá-lo com alegria (Sl 81).

(2) Súplica para quem Deus o ouça - o silêncio divino é angustiante e o que o salmista mais deseja é que o Senhor o responda (Sl 77, 80 e 83).

(3) Justiça, recompensa e prosperidade - embora ele possa até demonstrar certa inveja dos ímpios que prosperam, mas sabe que no fim a recompensa justa vem do Senhor para aqueles que lhe são fiéis (Sl 73, 75, 76, 82 e 83).

E lá mais adiante, quando da rededicação do Templo levada a cabo pelo rei Ezequias, o próprio texto sagrado equipara Asafe ao próprio Davi e o reconhece como compositor e profeta.

 

sexta-feira, 24 de julho de 2020

O QUE FOI QUE VOCÊ FEZ?

 

Depois de ter ouvido o chamado para levar a mensagem ao povo de Nínive, "porque a sua maldade subiu até a minha presença" (Jn 1:2), o profeta decidiu tomar um rumo diferente: embarcou para Társis decido que estava de fugir da presença do Senhor.

Veja que Deus poderia impedir o profeta de tomar a direção errada, mas ele sempre permite que os seus servos tomem as próprias decisões e assumam as responsabilidades por elas.  

Assim foi com Jonas: o Senhor permitiu que ele embarcasse no navio errado e assumisse as consequências desta decisão.  Mas por outro lado, o próprio Deus providenciou um meio para que outros não sofressem pelos erros do profeta.

Estando no navio errado, o Jonas procurou dormir no porão, provavelmente para aliviar o peso na consciência.  

Enquanto Jonas dormia, abateu sobre eles uma "tempestade tão violenta que o barco ameaçava arrebentar-se" (Jn 1:4).  Os marinheiros tentaram usar de todos os métodos para salvar a embarcação mas nada deu resultado.  Então eles entenderam que deveria haver uma causa para tamanha tormenta.

Foi nesta hora que, lançando sorte, chegaram ao nome de Jonas e o encontraram em seu esconderijo.  Assustados então eles lhe questionam:

 

Diga-nos, quem é o responsável por esta calamidade? Qual é a sua profissão? De onde você vem? Qual a sua terra? A que povo você pertence? (Jn 1:8)

 

O profeta então se apresentou:

 

Eu sou hebreu, adorador do Senhor, o Deus dos céus, que fez o mar e a terra.
(Jn 1:9)

 

A fala do profeta deixou os marinheiros apavorados: "O que foi que você fez?" (Jn 1:10).  É como se eles estivessem ao mesmo tempo perplexos e indignados com a atitude do companheiro de viagem causador daquela desgraça: se você conhecia o Senhor e sabia do que ele é capaz, por que você foi fazer uma tolice dessas e nos colocar neste risco?

O questionamento seguinte foi consequência: "O que devemos fazer com você, para que o mar se acalme?" (Jn 1:11).  O texto bíblico narra que os marinheiros, suplicando pela clemência divina, jogaram Jonas no mar e, com isso, simplesmente o mar "se aquietou" (Jn 1:15).

O primeiro capítulo do livro da profecia de Jonas conclui então observando que aqueles homens do navio ofereceram um sacrifício e se comprometeram através de votos.

A Jonas restou apenas ser engolido por um grande peixe providenciado pelo próprio Senhor.

 

terça-feira, 21 de julho de 2020

PAÍSES NA BÍBLIA

As narrativas bíblicas sempre se reportam a um ponto no tempo e no espaço.  História e geografia fazem parte do texto.  A seguir listei alguns países em seus nomes atuais e que foram citados nas Escrituras.  O mapa eu copiei no Google Maps apontando sua indicação.

 

Arábia (hebraico: ערב / grego: Ἀραβία) - no AT há diversas citações aos reinos existentes na península árabe (exemplo: 2Cr 9:14).  No NT, Paulo diz que após sua conversão foi ao deserto da Arábia (em Gl 1:17).

Chipre (grego: Κύπρος / latim: Cyprius) - a terra de nascença de Barnabé (At 4:36).  A ilha de Chipre foi o primeiro destino de Paulo em sua primeira viagem missionária (At 13:4).

Egito (hebraico: מצרים / grego Αἴγυπτος / latim: Ægyptus) - um dos lugares mais citados em toda a Bíblia: os impérios e reinos ao longo do vale fértil de Rio Nilo, na África.  Desde a descida do patriarca Abraão por causa da seca (em Gn 12:10) até a referência simbólica no Livro da Revelação (Ap 11:8).

Espanha (grego: Σπανία / latim: Hispaniam) - a única citação está na Carta de Paulo aos Romanos (Rm 15:24-28) onde o apóstolo demonstra interesse em expandir até lá o evangelho.  Pelo momento histórico a referência deve ser à península hispânica (hoje Espanha e Portugal).

Etiópia (hebraico כוש / grego Αἰθιοπία / latim: Æthiopiam) - país com bastante citações em passagens do AT (como em Ez 30:4), embora algumas vezes a referência seja traduzida apenas como a "terra de Cuxe" (como em Gn 2:13).  No NT há a citação do eunuco etíope (grego: Αἰθίοψ - At 8:27) que foi alcançado por Filipe. Talvez aqui a indicação geográfica implique em áreas que atualmente abrangem o sul do Egito, o Sudão e a atual Etiópia.

Grécia (hebraico: יון / grego: Ἑλλάς / latim: Græcia) - no AT, os profetas Daniel e Zacarias citam a nação grega (Dn 11:2 / Zc 9:13).  No NT, as citações aos gregos e suas terras são diversas (por exemplo At 20:2).  Em ambos os testamentos a referência mais precisa talvez seja apenas a um Estado existente na península helênica e não a nação grega como a conhecemos.

Índia (hebraico: הדו) - na apresentação do livro de Ester é dito que os domínios do rei Assuero (Xerxes) se estendiam até a Índia (Et 1:1).

Irã (grego: Ιράν) - o país que hoje denominamos como Irã (o nome só veio a aparecer no século III d.C.) era citado como a Pérsia (hebraico: פרס / grego: Περσίς), em referência ao Império estabelecido pelos reis Dario, Xerxes e Ciro (veja por exemplo Ed 6:14 e 2Cr 36:23).

Iraque (hebraico: עיראק) - com esse nome, o lugar só passou a ser denominado a partir do século VI d.C.  A região da Mesopotâmia (entre os rios Tigre e Eufrates - hebraico: ארם נהרים / grego: Μεσοποταμία) é certamente o lugar mais citado na Bíblia (depois de Canaã e Israel).  No Iraque ficava a Torre da Babel (Gn 11:9).  Do Iraque saiu Abraão (Ur dos Caldeus - Gn 15:7).  O Iraque extirpou o reino de Israel (Assíria - 2Rs 17:23).  Para o Iraque foram levados cativos judeus (Babilônia - 2Cr 36:6).  No Iraque vários profetas desenvolveram seus ministérios (nas marques do rio Quebar - Ez 1:1).  Habitantes do Iraque estavam presentes no Pentecoste (At 2:9).  Em Apocalipse, o Iraque é citado simbolicamente (Ap 18:2).

Israel (hebraico: ישראל / grego: Ἰσραήλ) - o lugar onde se concentram as principais ações descritas na Bíblia.  A terra que Deus prometeu aos patriarcas (terra prometida - hebraico: הארץ המובטחת - Gn 12:7).  A terra conquistada (Canaã - hebraico: כנען - Nm 34).  O Reino unificado de Davi (2Sm 5:5).  No NT, Israel torna-se a representação do povo escolhido de Deus (Ef 2:12).

Itália (grego: Ἰταλία) - diversas citações do país em si.  Tanto o próprio país, ou a área da península itálica (como em At 27:6), como de sua capital: Roma (grego: Ῥώμη - Rm 1:7).

Jordânia (hebraico ירדן) - a Jordânia só ganhou independência e passou a usar essa nomenclatura no século XX d.C.  Nos tempos bíblicos as áreas a leste do rio Jordão eram ocupadas pelas tribos amonita, moabitas e edonitas (1Rs 11:1).

Líbano (hebraico: לבנון) - a região a norte de Israel rica em florestas de cedro e outras madeiras nobres é citada cerca de setenta vezes no AT (de Dt 1:7 a Zc 11:1).

Líbia (hebraico: פוט / grego: Λιβύη / latim: Libyæ) - as terras a oeste do Egito são referidas várias vezes no AT como Líbia (como em Na 3:9).  No episódio de pentecoste, a relação citada inclui cidadãos oriundos da Líbia (At 2:10).

Palestina (hebraico: פלשתינה / grego: Παλαιστίνη / latim: Palæstina) - o nome da região foi dado pelo Império Romano a partir do hebraico (Filístia - פלשת).  A região dos filisteus (povos indo-europeus conhecidos como povos do mar) e suas principais cidades são citadas várias vezes no AT (como Gaza - hebraico: עזה - Jz 16:1 e Asdode - hebraico: אשדוד - 1Sm 5:1).

Síria (hebraico: ארם / grego: Συρία) - ou a terra dos arameus.  É um pais situado em planícies férteis ao norte de Israel.  Ali floresceu um império que batalhou diversas vezes contra Israel (Reino do Norte - 2Rs 8:28).  Para Damasco, capital da Síria, Paulo se dirigia quando se converteu (At 9:2).

Turquia (grego: Τουρκία) - a nação turca que hoje ocupa a península da Anatólia na Ásia e se estende até a Europa não é citada explicitamente com esse nome na Bíblia.  O nome só foi adotado no século XIV d.C.  Na época, a região era denominada de Ásia Menor (grego: Μικρὰ Ἀσία ou Ἀνατολή), porém diversas e variadas cidades e regiões dali são citadas no NT (como por exemplo a Galácia, a Panfília, Frígia e Cicília - At 2:10).

 

sexta-feira, 17 de julho de 2020

A AUTOCOMPREENSÃO DE JESUS

 

Lucas diz que Nazaré foi a cidade escolhida para seu primeiro contato mais formal com o povo – uma espécie de apresentação oficial.  Lá Jesus tinha crescido e com certeza era bastante conhecido de todos.

Num sábado, Jesus repetiu o gesto costumeiro de ir à sinagoga e então levantou-se para ler (confira em Lc 4:16).  Ele abriu o Livro de Isaías (em nossas Bíblias consta do capítulo 61), leu o texto profético e o aplicou para si mesmo cada uma daquelas palavras: hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir (v. 21).

Na compreensão de Jesus, o que fora dito ao profeta deveria ser lido na sua intenção.  Assim deveria ser descrita a sua missão.  A missão que Jesus teria a cumprir era exatamente de evangelizar os pobres, proclamar liberdade e apregoar o ano aceitável do Senhor.

Em resumo.  Já na primeira apresentação, Jesus se define como aquele que veio em busca dos perdidos, dos excluídos da sociedade, dos sem esperança, dos alheios a religião oficial, mas que a todos eles o evangelho deveria ser oferecido.  Esta seria a prioridade de Jesus em sua missão.

Contudo, neste primeiro contato a reação foi contrária – ele não foi bem aceito: não é este o filho de José? (v. 22).  Aqueles homens não foram capazes de reconhecer no homem Jesus a manifestação divina real e presente.

Então que Jesus decidiu levar a mais adiante seu ministério.  Foi a Cafarnaum onde muitos se maravilharam com sua doutrina e teve a oportunidade de realizar seus milagres iniciais (leia Lc 4:31 em diante).

Acontece que Cafarnaum também não deveria o destino final de sua missão e ele apontou que era preciso ir a outras cidades também, pois – como ele disse – para isso é que fui enviado (Lc 4:43).

(Publicado originalmente na Revista "Lucas" - Editora Sabre)

 

terça-feira, 14 de julho de 2020

O SÉTIMO DIA E O TRABALHO DE DEUS

 

Vamos considerar em primeiro lugar o próprio texto de Gn 2:2.  Veja uma boa tradução:

 

Chegando ao sétimo dia, depois de Deus já ter concluído tudo o que tinha para criar, ele descansou.

 

Aqui o autor bíblico faz um interessante e gostoso jogo de palavras entre o verbo descansar (heb. שבת) e o numeral sétimo (heb. שביעי).  As duas palavras têm uma mesma raiz (bem como o nome do dia de sábado - heb. יון שבת).

O texto todo é um poema riquíssimo e aqui nesse versículo o autor faz a conclusão dele.  É como se o texto estivesse me dizendo: "agora tudo está completo como Deus queria".

Quanto ao que Deus fez nesse sétimo dia, o verso seguinte (2:3) diz que ele santificou.  Aqui há uma lição importante: o Deus que no princípio foi o Criador de tudo agora é o Santificador.

Sobre o nosso trabalho hoje, esse texto nos lembra do início de todas as coisas e de como o próprio Deus nos serve de modelo.  Também já há uma antecipação do Mandamento:

 

Em seis dias criem e trabalhem em todas as suas obras, mas separe um sétimo para descansar e o santifique ao Senhor.

 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?

 

A história dos irmãos Caim e Abel e seu desfecho trágico é bastante conhecida.  Faz parte das narrativas contadas e recontadas nos quatro cantos da terra.

A malquerença fratricida contada no início do Gênesis descreve bem as consequências da perda do paraíso: a harmonia e irmandade deram lugar às desavenças e segregação. 

Nesse sentido, o episódio primordial daqueles irmãos espelha, de certo modo, a história de todos nós.  O desentendimento de irmãos que desemboca em morte: isso exemplifica bem a condição humana, desde a sua origem.

 

Na narrativa bíblica (em Gn 4), Caim, não mais podendo conviver com o êxito do irmão, resolve dar cabo da situação dissimulando e atraindo Abel para uma cilada de morte.

Com o sangue derramado e clamando aos céus, o próprio Senhor vem ao encontro de Caim e o questiona:

— Onde está teu irmão?

Resposta é um pouco de ironia, sarcasmo, desaforo, cinismo, insulto.  Ou uma sopa disso tudo:

— O que eu tenho a ver com a vida desse sujeito?  Por que eu tenho que dar conta dele?

Aqui não quero analisar a interpelação divina ou os desdobramentos que sobrevieram ao irmão assassino.  Quero aproveitar a retórica debochada para pensar o quanto Caim estava equivocado.

 

Por que tenho que dar conta onde está meu irmão?

E aqui eu identifico pelo menos cinco respostas:

1. Porque só me reconheço enquanto ser humano diante do outro.  Ou seja, minha identidade depende do outro. 

O Deus que nos criou é constituído em relacionamento Trinitário.  Nós, criados a sua imagem e semelhança, só o refletimos à medida que nos relacionamos.  Somos seres relacionais por constituição e semelhança com o Criador, então para que eu possa ter minha identidade perfeitamente constituída eu preciso dar conta onde está meu irmão.

É bem provável que muitos homens e mulheres de hoje tenham sua humanidade fragilizada por não olharem para o outro.

2. Porque o Deus que adoro busca pelo próximo.  Ou seja, minha adoração a Deus tem que refletir minha preocupação com o próximo.

Se o primeiro mandamento me aponta na vertical para um Deus único que exige adoração, o segundo, semelhante a esse, me descortina o horizontal.  Logo, para que minha adoração e culto sejam aceitos perante o Senhor eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Talvez aqui esteja o motivo de tantos cultos vazios de adoração - embora cheios de rituais, barulho e música - pois lhes falta a busca pelo próximo.

3. Porque nossa sobrevivência, enquanto espécie ou indivíduos, depende da participação de todos.  Ou seja, minha vida só subsiste na interação com o meu irmão.

Isso vale também para nossa sobrevivência como servos de Cristo.  Cristo fundou a sua igreja e cuidou para a vida e saúde espiritual dos salvos acontecessem em comunidade.  Então implica que para eu possa viver meu cristianismo de modo saudável eu preciso dar conta onde está  meu irmão.

Sem dúvida é por tal razão que cristãos hoje de vida e compromisso nominal com o Senhor experimentem um decaimento espiritual ao lhes engajamento com a sua igreja.

4. Porque é bom viver em comunidade.  Ninguém é uma ilha.  Ou seja, minha vida é melhor quando estou em contato com pessoas que me aprazem.

Entendo que a fala divina lá no início sobre como não é bom que o homem esteja só pode ser aplicada aqui sem dilapidar o texto.  É ruim viver só.  Por outro lado, uma boa companhia alegra e traz colorida à vida.  É por isso que eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Há muita gente irritada e irritante por aí - gente de vida chata!  E certamente eles são assim por se isolarem de boas amizades e irmandades.

5. Porque o futuro é construção coletiva.  Ou seja, meu porvir depende do que fazemos juntos hoje.

Eu sei e creio piamente na obra da graça e em como Cristo virá para resgatar os seus e restaurar a história.  Mas é indiscutível que aquilo que fazemos agora implica mutuamente naquilo que nos acontecerá.  Daí que para aguardar o futuro eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Essa é a razão porque alguns olham para frente e sofrem ansiedade e angústia.  O futuro parece cinzento e sombrio porque falta a tantos um projeto digno de vida coletiva.

 

Assim posso concluir ecoando as palavras do Salmo:

 

Como é gostoso o elo entre os irmãos.  Parece o orvalho que desce suavemente fecundando os montes (Sl 133).

 

terça-feira, 7 de julho de 2020

MUDE A PERSPECTIVA

 

Considere as situações:

 

Um gigante filisteu está afrontando Israel.

Os israelitas:

— Ele é muito grande, não vamos vencer!

O pequeno Davi:

— Ele é muito grande, é mais fácil acertar!

 

Paulo está preso:

O soldado romano:

— Você está acorrentado a mim, nem tente escapar.

O apóstolo:

— Você está acorrentado a mim, então escute o que tenho para lhe dizer.

 

Os pés de Jesus foram ungidos:

Judas:

— Que perfume caro, podia ter sido vendido!

João:

— Que perfume caro, o cheiro é muito bom.

 

As chuvas voltam às terras de Belém:

Noemi:

— Você não é dessa terra, volte para seu povo.

Rute:

— Eu não sou dessa terra, mas a companhia vale o risco.

 

O que há em comum nessas narrativas?  Uma situação problema e diferentes possibilidades de perspectivas.

O que eu vejo em cada uma delas?  Mais do que um otimismo ingênuo, eu percebo que a capacidade de desenvolver a fé em meio à crise e continuar olhando na perspectiva do Alto, pode fazer toda a diferença.

E você, está olhando a partir de qual perspectiva?