sexta-feira, 10 de julho de 2020

ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?

 

A história dos irmãos Caim e Abel e seu desfecho trágico é bastante conhecida.  Faz parte das narrativas contadas e recontadas nos quatro cantos da terra.

A malquerença fratricida contada no início do Gênesis descreve bem as consequências da perda do paraíso: a harmonia e irmandade deram lugar às desavenças e segregação. 

Nesse sentido, o episódio primordial daqueles irmãos espelha, de certo modo, a história de todos nós.  O desentendimento de irmãos que desemboca em morte: isso exemplifica bem a condição humana, desde a sua origem.

 

Na narrativa bíblica (em Gn 4), Caim, não mais podendo conviver com o êxito do irmão, resolve dar cabo da situação dissimulando e atraindo Abel para uma cilada de morte.

Com o sangue derramado e clamando aos céus, o próprio Senhor vem ao encontro de Caim e o questiona:

— Onde está teu irmão?

Resposta é um pouco de ironia, sarcasmo, desaforo, cinismo, insulto.  Ou uma sopa disso tudo:

— O que eu tenho a ver com a vida desse sujeito?  Por que eu tenho que dar conta dele?

Aqui não quero analisar a interpelação divina ou os desdobramentos que sobrevieram ao irmão assassino.  Quero aproveitar a retórica debochada para pensar o quanto Caim estava equivocado.

 

Por que tenho que dar conta onde está meu irmão?

E aqui eu identifico pelo menos cinco respostas:

1. Porque só me reconheço enquanto ser humano diante do outro.  Ou seja, minha identidade depende do outro. 

O Deus que nos criou é constituído em relacionamento Trinitário.  Nós, criados a sua imagem e semelhança, só o refletimos à medida que nos relacionamos.  Somos seres relacionais por constituição e semelhança com o Criador, então para que eu possa ter minha identidade perfeitamente constituída eu preciso dar conta onde está meu irmão.

É bem provável que muitos homens e mulheres de hoje tenham sua humanidade fragilizada por não olharem para o outro.

2. Porque o Deus que adoro busca pelo próximo.  Ou seja, minha adoração a Deus tem que refletir minha preocupação com o próximo.

Se o primeiro mandamento me aponta na vertical para um Deus único que exige adoração, o segundo, semelhante a esse, me descortina o horizontal.  Logo, para que minha adoração e culto sejam aceitos perante o Senhor eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Talvez aqui esteja o motivo de tantos cultos vazios de adoração - embora cheios de rituais, barulho e música - pois lhes falta a busca pelo próximo.

3. Porque nossa sobrevivência, enquanto espécie ou indivíduos, depende da participação de todos.  Ou seja, minha vida só subsiste na interação com o meu irmão.

Isso vale também para nossa sobrevivência como servos de Cristo.  Cristo fundou a sua igreja e cuidou para a vida e saúde espiritual dos salvos acontecessem em comunidade.  Então implica que para eu possa viver meu cristianismo de modo saudável eu preciso dar conta onde está  meu irmão.

Sem dúvida é por tal razão que cristãos hoje de vida e compromisso nominal com o Senhor experimentem um decaimento espiritual ao lhes engajamento com a sua igreja.

4. Porque é bom viver em comunidade.  Ninguém é uma ilha.  Ou seja, minha vida é melhor quando estou em contato com pessoas que me aprazem.

Entendo que a fala divina lá no início sobre como não é bom que o homem esteja só pode ser aplicada aqui sem dilapidar o texto.  É ruim viver só.  Por outro lado, uma boa companhia alegra e traz colorida à vida.  É por isso que eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Há muita gente irritada e irritante por aí - gente de vida chata!  E certamente eles são assim por se isolarem de boas amizades e irmandades.

5. Porque o futuro é construção coletiva.  Ou seja, meu porvir depende do que fazemos juntos hoje.

Eu sei e creio piamente na obra da graça e em como Cristo virá para resgatar os seus e restaurar a história.  Mas é indiscutível que aquilo que fazemos agora implica mutuamente naquilo que nos acontecerá.  Daí que para aguardar o futuro eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Essa é a razão porque alguns olham para frente e sofrem ansiedade e angústia.  O futuro parece cinzento e sombrio porque falta a tantos um projeto digno de vida coletiva.

 

Assim posso concluir ecoando as palavras do Salmo:

 

Como é gostoso o elo entre os irmãos.  Parece o orvalho que desce suavemente fecundando os montes (Sl 133).

 

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