sexta-feira, 28 de fevereiro de 2020

UM SÓ CUIDADO


Eu me lembro de ter ouvido  a canção "Não Tenhas Sobre Ti" pela primeira vez ainda nos meados dos anos 1980 logo depois de ela ter sido lançada.  E nunca mais saiu da minha memória.
Para citação, tenho guardadas algumas referências da época – mas hoje é fácil atualizar via internet.  A composição, atribuída a Jefferson Ferreira e Josué Rodrigues, foi gravada inicialmente no LP MILAD 1 em 1986.  Ainda para citação, o grupo goiano MILAD – Ministério de Louvor e Adoração foi um grupo que se apresentava como fruto da visão que Deus concedeu para formar um ministério que pudesse agenciar trabalhos nas áreas das "artes-cristãs".  O MILAD se manteve em atividade entre os anos 1984 e 2003 e o Wikipedia se refere a ele como um dos mais notórios e conceituados da música cristã brasileira nos anos 80.
Depois desse parágrafo grande de citação, vamos voltar para a canção.
Na época em que conheci a canção, eu estava aprendendo a tocar os primeiros acordes no violão – não me tornei um expert nessa arte! – e ser capaz de tocá-la com as três ou quatro cifras da versão simplificada que me passaram era realmente o máximo.
Talvez seja por essa lembrança que a canção não foi mais esquecida.
Pode ser que sim, mas hoje penso que as razões de ela ter grudado são outras.  É certo que as sequências melódicas e harmônicas são atraentes, mas ninguém guarda memórias, principalmente afetivas, a partir de dados e referências técnicas.
Depois daquele contato inicial com a canção, ela voltou a mim em várias outras ocasiões e circunstâncias e sempre indo se agasalhar no mesmo ponto de minha alma.
Então aqui está o motivo da lembrança persistente e reforçada: a música, como comunicação de arte que é, tem o poder nos tocar (que pleonasmo delicioso!).
E se quiser ler mais sobre o que é arte e a força que ela representa, eu já publiquei três diálogos sobre arte (aqui está o link). 

E sendo mais específico sobre a canção em si, deixe-me compartilhar o que ela diz para mim.
A melodia se funde perfeitamente com o texto e o conduz a outro nível.  Assim, juntas, melodia e letra, soam como se fossem entoadas como uma canção de ninar na voz suave de uma mãe – ou do Pai Eterno se preferir – e eu então me sinto nesse colo materno/divino sendo carinhosamente acalentado.
Se conseguir manter a canção em sua mente enquanto degusta esta reflexão penso que vai ser melhor.  Canções de ninar têm que vibrar a partir do interior, da alma, e não dos ouvidos.  Se conseguir, bom!  De qualquer forma, note as palavras da canção.  Posso citá-las de cor.
Não tenhas sobre ti, um só cuidado qualquer que seja
Pois um, somente um, seria muito para ti.
Mas como!?  A vida está cheia de aperreios, como não se esgarçar nem se estressar nos cuidados!?
E o refrão coloca tudo no seu lugar:
É meu, somente meu, todo trabalho
E teu trabalho é descansar em mim.
Agasalhado no colo divino eu posso simplesmente descansar e relaxar ao ouvir sua voz declarando que se ocupa comigo (não preciso me pre-ocupar!).  Sim, ela se ocupa com meu cuidado.  E isso é suficiente.
Mas a vida continua...
Então eu chego à segunda parte da canção:
Não temas quando enfim, tiveres que tomar decisão
Entrega tudo a mim, confia de todo coração.
Eu bem que queria ficar no colo para sempre, mas não dá!  Só que também aqui não há problema, pois posso seguir confiante, tem quem me dê suporte nas minhas decisões.
E volto ao refrão já agregando novos significados ao aconchego.
Poderia terminar por aqui, a canção está completa.  Mas meu senso de Sola Scriptura me exige uma citação, e não vou me furtar dela:
... lançando sobre ele toda a vossa ansiedade, por ele tem cuidado de vós (1Pe 5:7).

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

PEDRO E JOÃO NA PORTA DO TEMPLO


Frequentando o Templo de Jerusalém, como judeus que eram, mas tendo a convicção de que Jesus era o Messias que a nação deveria esperar e diante do qual se curvar, Pedro e João encontraram um mendigo na porta que lhes pediu esmola.
Este era um quadro bastante comum naquele local sagrado e que deveria merecer um posicionamento da igreja: o que fazer com os pobres em nossas portas? (é bom lembrar que próprio Jesus já previu que sempre teremos a presença deles entre nós – veja Mt 26:11).
No século primeiro da era cristã a situação socioeconômica na região da Judeia chegou a condições críticas.  A distinção entre pobres e ricos era acentuada e não podia ser desconsiderada.  Enquanto uma pequena elite social, e até religiosa, em Jerusalém vivia em opulência, uma grande maioria não dispunha dos meios necessários para uma sobrevivência digna.  E entre estes últimos havia aqueles em absoluto estado de pobreza e miséria.
Embora nas leis do AT houvesse uma série de códigos e prescrições sociais que protegiam os menos favorecidos, tais leis há muito já não eram praticadas entre os filhos de Israel.  
O texto de Levítico diz de maneira direta: Se alguém do seu povo empobrecer e não puder sustentar-se, ajudem-no como se faz ao estrangeiro e ao residente temporário, para que possa continuar a viver entre vocês (Lv 25:35 – mas veja também outros textos como Êx 22:22-27 e Dt 15:1-4).
 Longe deste padrão legal bíblico, a cidade de Jerusalém, e em especial os arredores do Templo, estava repleta de pessoas que não tinham a mínima condição de autossustento e viviam da esmola e caridade dos mais abastados.
Alguns fatores levaram ao longo dos anos esta grande quantidade de homens e mulheres à pobreza e à mendicância nas ruas de Jerusalém: os altos impostos para custear a monarquia e a dominação romana; a presença de mão-de-obra barata (como escravos), que tirava de muitos a oportunidade de trabalhar; a incidência de deficiência física (como a cegueira e a paralisia) impedia as pessoas de ganhar seu próprio sustento; a morte de um pai deixava sempre esposa e filhos pequenos sem sustento; e a inescrupulosa ação dos agiotas cobrando altos juros de alguém que precisou de um empréstimo.
Este era o ambiente que a igreja primitiva encontrou nas ruas da cidade santa quando iniciou seu ministério.  Os apóstolos que foram ao Templo para orar – como faria todo judeu devoto – tiveram que cruzar em seu caminho com vários destes excluídos da vida social e religiosa do Templo em Jerusalém.  Porém ao contrário da elite sacerdotal judaica, a igreja se posicionou logo de início de maneira diferente.

Leia mais uma reflexão sobre este encontro em “NÃO TENHO PRATA NEM OURO” (link aqui)

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2020

LUTANDO CONTRA DEUS


O autor do Livro de Atos dos Apóstolos diz de maneira clara que o sumo sacerdote, e seus companheiros saduceus, ficaram cheios de inveja do que Deus fazia através da igreja (veja At 5:17).  E foi esta a motivação que levou a desencadear a perseguição, prisão e novo julgamento dos apóstolos. 
Diante da situação de tensão social que Jerusalém vivia, a liderança judaica mostrou inveja e medo de que o controle da nação saísse de suas mãos para as mãos destes homens sem instrução.
Acompanhe a sequência dos fatos como narrados no capítulo cinco de Atos dos Apóstolos:
→ Os apóstolos são presos – v. 18
→ Um anjo os solta – v. 19
→ De manhã, cumprindo ordens, voltam a pregar no pátio do Templo – v. 21
→ Os guardas vão buscá-los na prisão pública e acham o cárcere vazio – v. 22
→ Chega a notícia de que os apóstolos voltaram a pregar –  v. 25
→ Os guardas reconduzem os apóstolos, agora sem uso de força, até o Sinédrio – v. 26
→ Os discípulos afirmam que é melhor obedecer a Deus – v. 29
Convém destacar que também aqui, diante do confronto do Sinédrio, embora com acusações duras contra os líderes judeus, a defesa e a mensagem apostólica está centrada na pessoa e na obra de Cristo (observe At 5:30-32).
Neste ponto exato das discussões, apareceu a figura de Gamaliel que, mesmo não tendo aderido à fé cristã, apresentou o mais sábio conselho diante de todo o episódio.  Com um coerente embasamento histórico, o proeminente líder dos judeus apresentou seu argumento:
Portanto, neste caso eu os aconselho: deixem esses homens em paz e soltem-nos.  Se o propósito ou atividade deles for de origem humana, fracassará; se proceder de Deus, vocês não serão capazes de impedi-los, pois se acharão lutando contra Deus. (At 5:38-39)
E deste conselho, pelo menos quatro lições importantes devemos extrair: a) nenhum projeto de origem humana prospera; b) embora Deus nos traga boas novas sempre, a história é um celeiro farto de lições; c) nunca se deve julgar ou avaliar as pessoas, mas sempre analisar o conteúdo da mensagem, os comportamentos e atitudes; e d) lutar contra Deus (se antepor ou afrontá-lo) é a pior decisão que o ser humano pode tomar.
E o texto bíblico conclui esta narração citando que, apesar das palavras de Gamaliel, o Sinédrio ordenou açoitar os discípulos e mais uma vez ordenar que se calassem quanto à mensagem de Jesus Cristo. 
O que chama a atenção, porém é que os apóstolos saíram do Sinédrio alegres por terem sido considerados dignos de serem humilhados por causa do Nome (palavras de At 5:41). 
Sem dúvida este é um dos segredos do sucesso dos primeiros passos da igreja.