Vamos
fazer uma análise do texto de Rm 9:20-24. Levarei em consideração
suas questões, bem como o áudio que você me mandou depois.
Em
primeiro lugar: um pouco sobre as palavras gregas mais destacadas do
texto.
1.
Honra
– gr. τιμή. Embora a tradução usual como honra
seja boa, é interessante notar que o sentido deriva da ação de
atribuir
ou reconhecer
o valor de algo ou alguém. No grego moderno eles usam ainda para
significar preço,
valor.
No AT, equivale ao hebraico כבוד
que
pode ser lido, por exemplo, no Sl 8:5 se referindo à dignidade
atribuída por Deus ao ser humano ou em Pv 15:33 como acompanhando a
humildade. No NT, Paulo instrui a atribuir a quem merece em Rm 13:7
e em Ap 5:13 todas as vozes da criação incluem na proclamação ao
que está sentado sobre o trono.
2.
Desonra
– gr. ἀτιμία. Expressão pouco usada no NT grego, quer
nesta forma de substantivo, verbo ou adjetivo. A formação
etimológica é α + τιμή = não
+ honra.
O sentido em geral aponta vergonha
ou indignidade.
Os sinóticos usaram para se referir ao profeta sem honra em sua
terra (veja Mt 13:57 / Mc 6:4). Em 2Tm 2:20 a expressão grega
encontrada no texto é esta mesma.
3.
Vaso
– gr. σκεῦος. Literalmente coisa.
A tradução como vaso
é uma referência ao objeto pela sua múltipla utilidade,
principalmente doméstica. Em At 9:15 o Senhor se refere ao próprio
Paulo como um vaso escolhido e em 1Ts 4:4 a coisa
é o próprio corpo a ser possuído com honra (gr. σκεῦος …
ἐν τιμῇ). Aqui em Rm, Paulo se utiliza da alegoria retirada
de Jr 18.
4.
Ira
– gr. ὀργή. Em todo o NT grego esta palavra aparece quase 50
vezes (tanto na forma de substantivo como verbo), geralmente usada
por Paulo e no Apocalipse. No verso 22 do texto de Rm 9 ela está em
referência à ira mostrada por Deus e aos vasos de ira. Ira,
raiva,
indignação
são boas traduções. Mas ainda em Rm 3:5 e 5:9 talvez julgamento
ou punição
possam traduzir melhor a mesma palavra.
5.
Preparados
– gr. κατηρτισμένα (de καταρτίζω).
Morfologia: particípio, perfeito, passivo. Literalmente: preparar,
deixar
pronto,
colocar
em ordem.
Em Lc 6:40 (com a mesma morfologia), a expressão se refere ao
discípulo que concluiu a contento as instruções do mestre. Já em
Hb 11:3 entendemos que a criação foi
formada
pela palavra de Deus (aqui infinitivo passivo). No texto de Rm, o
fraseado não indica de forma explícita quem é o agente da passiva:
quem preparou? Entendo que o apóstolo não estava interessado nessa
discussão.
6.
Perdição
– gr. ἀπώλειαν. Geralmente usada em contextos
escatológicos no NT grego, como em Ap 17:8; 2Pe 3:7 ou Mt 7:13.
Porém em Mt 26:8 e Mc 14:4 a tradução desperdício
é apropriada.
7.
Misericórdia
– gr. ἔλεος. Essa é uma boa palavra para entender o
contexto e ajudar na explicação. Paulo já a havia usado no verso
15 logo antes (citando Êx 33:19 – heb. חנן
– no
maravilhoso texto quando Moisés pode ver a glória do Senhor
passando).
Tendo
considerado estas análises linguísticas, vamos ler o texto todo e
entendê-lo melhor.
Antes,
permita-me uma citação. Escrevi recentemente algo sobre PANOS DE HONRA que toma como base esse texto de Rm 9:20-21. Ali me dei a liberdade
de vagear no encontro de outros horizontes possíveis de
interpretação do texto apostólico. Sua leitura pode ajudar (link aqui).
Paulo
aos Romanos. A base teológico-doutrinária que o apóstolo
argumenta na Epístola é a superioridade da graça em relação à
Lei. Para embasar sua tese ele usa de várias analogias, comparações
e citações do AT, começando por Abraão que foi justificado não
pela Lei (Rm 4:13), passando pela escolha divina por Jacó (Rm 9:13)
e principalmente afirmando que diante de Deus todos são igualmente
pecadores – os que vivem sob a Lei e os que não vivem – logo
falta-lhes a glória de Deus (Rm 3:23 – gr. ὑστεροῦνται
de ὑστερέω – mesma palavra para indicar o que faltava ao
jovem rico em Mc 10:21).
Vou
insistir com Paulo. Mais importante que qualquer outra garantia, a
manifestação da soberania é o que determina que nenhuma condenação
há para os que estão em Cristo Jesus (Rm 8:1) e que a promessa a
Abraão se cumpre não pela descendência através da carne mas nos
filhos da promessa (Rm 9:8).
Assim
é que o apóstolo chega ao capítulo 9 argumentando que a garantia
do perdão dos pecados está na graça soberana de Deus e não na
linhagem de sangue dos judeus – esse argumento é forte para Paulo!
Lembre-se de que ele está em um embate ferrenho com os judaizantes
no meio da igreja que ameaçava fazer sucumbir e invalidar toda a
missão paulina aos gentios e, consequentemente, a própria igreja
cristã com seu alcance universal.
Antes
de prosseguir lendo o texto: – E a questão dos preparados
antecipadamente?
Querer usar esta citação como alicerce para uma doutrina da
predestinação – como se Deus já houvesse antes do ato da criação
em Gn 1 escolhido o destino de todas as criaturas – ou apenas
descartá-la buscando exegese alternativa que suavize a questão é
apenas atribuir a Paulo uma sistematização teológica completamente
alheia a sua doutrina. Questões como esta só teriam destaque na
Teologia cristã séculos depois.
Outro ponto antes de voltar ao
texto é sobre a personalização ou individualização de nossa fé
cristã. Nossa compreensão de um destino pessoal e eterno a ser
certificado hoje é muito resultado de desenvolvimento posterior da
doutrina cristã – também sob influência do individualismo
moderno e do pietismo europeu.
Assim, voltando ao texto
analisado.
Embora a Bíblia reconheça que
há dois caminhos (confira Mt 7:12-13), Paulo no texto aos Romanos
passa de largo desta questão. Honra/desonra, ira, perdição não
são usados neste direcionamento. Aqui o ponto é sobre a soberania
de Deus e de como ele a manifestou primeiramente aos judeus e depois
aos gentios-cristãos para neles fazer conhecido sua graça e glória.
Deus é o Senhor e criador de
todos. Primeiramente ele escolheu Abraão, Jacó e seus filhos para
serem os portadores da Lei. Mas a Lei somente aponta/descrimina o
pecado, não o redime – explicita pecados, não refaz a criatura
moribunda (Rm 5:17). É por isso que a Lei e seus guardiães são
vasos onde Deus apenas manifestou sua ira, sua vingança, sua
punição. Creditou o salário do pecado (Rm 5:20 / 6:23).
Mas não era o fim que Deus
pretendia. Esse vaso estava destinado a ser transitório, apenas
preparar o caminho para o definitivo. Assim, para que todas as
riquezas de sua glória fossem conhecidas, Deus preparou também por
sua soberana graça vasos de misericórdia (Rm 9:23). Esses sim,
atingindo judeus de sangues e gentios alcançados. Aqui estão os
vasos de honra: todos os que são chamados filhos do Deus vivo (Rm
9:26).
Não faz muito sentido,
dialogando com Paulo a partir de Romanos, que ele trate de indivíduos
como vasos predestinados à ira. Os judeus, embora portadores da
primeira aliança – a Lei –, eles também precisam, aqui
individualmente, invocar o nome do Senhor para serem redimidos de
vasos de ira para vasos de honra. Para Deus não há distinção
entre ninguém (Rm 10:11-13).
Todos nós, humanos corrompidos
pelo pecado, nascemos na carne sob o jugo da Lei, escravos do pecado,
vasos desonrados – e os judeus mais ainda porque a conheciam em
primeira mão. Todos somos feitos da mesma massa de oleiro. Mas
Deus por sua graça soberana e misericordiosa preparou desde a
fundação dos tempos um modelo de vaso de honra no qual quer nos tornar em Cristo Jesus.
Importante: Não há
plano “B” de Deus e no plano “A”, onde a justiça/ira se
funde ao seu amor gracioso, há incontáveis gentes de toda nação,
tribo, povo, língua (Ap 7:9-10).
Contudo:
→ A responsabilidade é
pessoal – certo! (Rm 14:12).
→ Deus não quer que ninguém
se perca – certo também! (volte a Ez 18:32).
→ Deus ama a todo o mundo –
certíssimo! (conhecido Jo 3:16).
→ Não há um justo sequer –
é o que diz a Lei, logo todos são vasos de desonra (Rm 3:10-11).
→ Podemos deixar de ser
escravos para sermos filhos de Deus – gloriosa certeza! (Jo
1:11-13).
→ Roupas brancas é promessa
para os que se lavam no sangue do Cordeiro – seremos transformados
na eternidade em vasos de honra (Ap 22:14).
Concluindo:
A Lei foi dada para que a
desgraça fosse exposta – vaso de ira, vergonha, desonra e punição.
Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça – vaso de honra
para glória de Deus (Rm 5:50). Esse é o plano predeterminado.
Assim é a soberania cheia de graça de Deus em Cristo Jesus