terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O CULTO CRISTÃO E A RELIGIOSIDADE GREGA – 1ª parte

  

A fé cristã, logo cedo, se expandiu em várias direções; enquanto apóstolos como Paulo, Pedro e João seguiram rumo ao ocidente estabelecendo igrejas da Ásia Menor até a Europa romana, outras levas de apóstolos e discípulos de Cristo seguiram em outros sentidos.  Assim, por exemplo, se firmaram comunidades cristãs tanto no Egito de fala grega em Alexandria como de fala copta.  Também comunidades surgiram na Armênia e na Arábia e outras indo ainda mais além das fronteiras do Império Romano.  Cada uma destas comunidades agregou à incipiente herança cristã comum e às formulações judaicas compartilhadas desde o início várias outras tradições locais com mais ou menos liberdade e distanciamento desta herança.  Aqui, contudo, interessa-me o ramo da igreja que se estendeu para o mundo greco-romano, não somente porque numericamente se tornou majoritário, mas principalmente porque é dele que nascerá a Igreja no Brasil e dele receberá suas principais tradições, práticas e manifestações, inclusive de culto.

Ao romper os limites do judaísmo e entrar no helenismo, a igreja cristã encontrou uma cultura classicamente estruturada e uma religiosidade e mitologia arraigadas.  Entretanto o contato maior do cristianismo primitivo não foi com a cultura clássica grega, foi com a fé popular e com as manifestações cultuais mais em voga nas camadas da população mais carentes e menos letradas – onde a igreja encontrou maior número de adeptos.  Aqui duas manifestações cultuais se destacaram: o culto a Asclépio e os cultos de mistério gregos. 

Principalmente entre estas camadas populares nas comunidades greco-romanas, uma das divindades de maior popularidade e veneração no primeiro século era Asclépio, o qual passou a ser conhecido pelos romanos pelo nome de Æsculapius – Esculápio, e rivalizou com as crenças e celebrações cristãs pela preferência popular não-judia.  Seu templo principal ficava na cidade de Epidauro, no Peloponeso, mas existiram diversos locais de culto ligados a ele.

Segundo a Mitologia Grega, Asclépio era filho de Apolo e da ninfa Coronis, tendo sido educado pelo centauro Quiron de quem aprendeu as artes da cura e chegou a se tornar um grande médico.  Considerando a situação precária em que viviam as populações carentes ao longo do mundo greco-romano, a presença de um deus taumaturgo seria sempre alvo de grande devoção.  Quanto ao culto a Asclépio propriamente dito, chamado pelos gregos de Ασκλέπιος Σωτήρ (Asclepios Soter – Salvador), os santuários dedicados a ele se tornaram refúgios para toda espécie de doentes que os procuravam na esperança de que um deus lhes oferecesse a cura.  As práticas ali desenvolvidas consistiam na prescrição de regimes terapêuticos que teriam sido ensinados pela divindade e que incluíam prescrição de exercícios e dietas e rituais de incubação.

Como uma das ênfases da pregação da igreja sobre a divindade de Jesus atribuía-lhe o poder de curar, então, na visão popular, Jesus e Asclépio seriam em certo aspecto deuses rivais, consequentemente os seus respectivos cultos seriam também rivais.  Acontece que nas crenças politeístas, ao contrário da visão do monoteísmo ético pregado em Israel e recebido pela igreja, a rivalidade entre divindades não significaria necessariamente que um culto deveria anular o outro e sim que poderiam ser complementares.  Nesta concepção de sincretismo religioso tão em voga, o cristianismo acabou por ser influenciado pelo culto a Asclépio.

Em relação ao culto sincretista grego e sua influência sobre a Igreja Primitiva devo, porém, destacar a carta dirigida a Igreja de Pérgamo no Apocalipse (Ap 2:12-17).  Naquela cidade da Ásia Menor estava construída uma acrópole dedicada a vários deuses – entre eles Zeus, Atenas e o próprio Asclépio – além de ter sido ali estabelecido desde muito cedo o culto ao imperador – reconhecido como o "Divino Augusto".  Sobre este ambiente George Ladd observa:

Pérgamo também era o centro do culto a Asclépio, o deus-serpente das curas, e o seu colégio de sacerdotes-médicos era famoso.  Pérgamo, assim era uma fortaleza das religiões pagãs e do culto ao imperador, um ambiente extremamente difícil para uma igreja cristã.

Na carta do Apocalipse, embora se elogie a fidelidade dos cristãos dali, há o reconhecimento de que os cultos praticados na cidade eram na sua essência anticristãos: "Sei onde você vive – onde está o trono de Satanás" (Ap 3:13).  Por isso a reprimenda é enfática: "Tenho contra você algumas coisas: [...] comer alimentos sacrificados a ídolos e praticar a imoralidade sexual" (Ap 3:14).  Considerando que um dos enfoques principais do Apocalipse é a adoração ao Cordeiro – como já comentei acima – então qualquer manifestação cultual que incluísse outra divindade, mesmo que apenas tangencialmente (e aqui em especial devo incluir o culto popular a Asclépio e o culto oficial ao imperador), deveria ser encarada pela igreja como influência satânica e para tal atitude dever-se-ia exigir arrependimento (Ap 3:16).  Este posicionamento neotestamentário então me leva a compreender que, embora nas camadas mais populares possa ter havido uma tendência ao sincretismo; na sua formação doutrinária e cultual a igreja desde cedo primou pela exclusividade do culto a Cristo.

 

Do livro: DE ADÃO ATÉ HOJE – um estudo de Culto Cristão.

Na imagem lá em cima, a Acrópole vista a partir do Santuário de Asclépio –
crédito da imagem: Wikipedia.com

 


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Conheça também outros livros:
TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
PARÁBOLA DAS COISAS

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