A figura dos anjos está ampla e
variadamente misturada em nossa tradição cristã. E, embora não haja nenhum capítulo que trate
especificamente de sua descrição, eles são citados na Bíblia com
freqüência. É verdade também que aqui e
ali acrescentamos algum "conhecimento" herdado de outras tradições
não-cristãs, fazendo com que a noção destes seres se tornasse mística, quase
folclórica ou mitológica.
Veja na relação a seguir sete
coisas que a Bíblia não diz
sobre os anjos, mas que muita gente acredita e prega por aí:
1. Anjos com asas – por não haver na Bíblia nenhuma menção
detalhada da aparência dos anjos, tudo o que podemos saber é por associação ou
imaginação. Em geral eles são citados apenas
como varão. Mas nunca se fala em asas.
A confusão se dá porque figuras
como querubins (em Ez 10:5 por
exemplo) ou serafins (em Is 6:2)
aparecem descritos com asas. Mas aí já é
outra conversa. Sobre isso, veja o ponto
#3 logo abaixo.
2. Jacó lutou com um anjo – esse é clássico. A citação é da luta de Jacó no vale do rio
Jaboque em Gn 32:22-31. O texto diz que veio um homem que se pôs a lutar com ele até
o amanhecer (Gn 32:24 NVI).
O problema aqui é a expressão na
língua original: enquanto os versos Gn 32:1 e 28:12 falam em anjos (no hebraico מלאכי – de מלאך), o versículo da luta se
refere a um varão (no hebraico איש – mesmo termo encontrado em Gn 6:9). Ou seja, literalmente Jacó lutou com um
homem. O mais é interpretação ou
dedução.
É verdade que quando seu nome foi mudado,
a explicação foi porque ele lutou com
Deus e com homens e venceu (Gn 32:28 NVI).
Só que ainda neste versículo não se fala em anjos, pois a luta foi com
Deus e com homens.
3. Hierarquia dos anjos – como disse, não há capítulo bíblico
que trata de maneira explícita – ou didática – dos anjos. Eles simplesmente são citados sem maiores
detalhes ou preocupação. Assim, a Bíblia
não faz nenhuma referência à hierarquia.
E como se chegou a isso? O
primeiro escritor cristão a tratar do tema foi Clemente de Alexandria no século
II e depois se consolidando com um texto intitulado "A Hierarquia
Celeste" (em latim: De Coelesti
Hierarchia) atribuído a Dionísio Aeropagita.
Ausente nas páginas bíblicas, a
verdade contudo é que não há uma uniformidade dos comentadores sobre o tema –
há hipóteses variadas. Os títulos mais
utilizados, a partir do texto bíblico, para atribuir hierarquia são: Querubim (כרוב) – citado na
Bíblia como guardião do Éden em Gn 3:24 e colocados sobre o propiciatório em Ex
25:20. Serafim (שרף) – cuja única citação é Is
6:2. E Arcanjo (do grego ἀρχάγγελος) – que aparece nos textos de 1Ts
4:16 e Jd 9. Outros termos comuns são: principados, potestades e por aí
vai... e, como disse, não há consenso.
Eu sei que há outros textos que
podem indicar uma hierarquia, como por exemplo Js 5:13-15. Nesta passagem, Josué olhou para cima e viu um homem em pé (Js 5:13 NVI – no hebraico איש). É certo que ele se
apresenta com um título que indica uma patente militar: comandante do exército do Senhor
(no hebraico שר־צבא־יהוה), mas daí uma classificação
hierárquica angelical é extrapolação.
4. Anjo da morte – aqui também a citação bíblica é dúbia. Costumeiramente a primeira referência é ao
evento da Páscoa quando do Êxodo dos Filhos de Israel do Egito. No texto é dito que o Senhor não permitirá que o destruidor entre na casa
de vocês para matá-los (Ex 12:23 NVI – no hebraico משחית de שחת). A mesma expressão vai aparecer em 2Sm 24:16 /
1Cr 21:15. E embora a referência direta
a um anjo executando tal serviço só apareça nos textos históricos, em nenhum
deles a citação é explícita como "anjo
da morte".
Há outras duas passagens que
merecem citação: em Pv 16:14 aparece a expressão literal anjo da morte (מלאכי־מות) mas está
claramente usada num sentido conotativo, figurado e poético. Citá-lo aqui como um ser literal é forçar
bastante o texto. O outro texto é Jó
33:22 (onde a palavra hebraica é ממתים) e também o
senso poético deve prevalecer. No mais é
só inferência.
No NT o texto de Ap 9:11 cita Abaddon (em hebraico אבדון) que em grego é Apollion
(Απολλύων) como sendo o anjo do abismo. Penso que ainda aqui anjo da morte não cabe.
Na tradição judaica extra-bíblica
existem figuras de anjos da morte – ou malditos – como Azrael ou Samael. Mas por ser fora do texto canônico, então vou
poupar o comentário.
5. Anjo da guarda – sobre este tema eu já comentei em outro
post. Lá eu analisei o texto de Mt 18:10
e entendi, a partir do próprio texto e contexto, que a figura singular e sobrenatural
de um anjo destacado para cuidar exclusivamente de alguém não tem base (se
quiser ler mais, dê uma olhada no link).
Outro texto que já vi sendo usado
para argumentar sobre tais anjos é Ex 23:20.
Também entendo que a conclusão deve se aproximar da que chegamos em
relação ao texto evangélico.
6. Criancinhas se tornam anjos – essa é simplesmente sem nexo. Confesso que tenho dificuldade até de
encontrar qualquer texto que faça alguma ligação, mesmo tênue. Mesmo citações como a de Mt 19:14 – "Deixem vir a mim as crianças e não as
impeçam; pois o Reino dos céus pertence aos que são semelhantes a elas"
– não diz nada sobre criancinhas que morrem virarem
anjinhos.
A cultura popular criou a crença
de recém-nascidos que morrem são levados para o céu como anjos. Isso é útil para consolar os enlutados, mas
nada tem de verdade bíblica nem cristã.
Gente é gente e anjo é anjo.
7. Anjos têm filhos – sobre isso também já comentei quando
postei sobre os gigantes citados em Gn 6:4 (este é o link se quiser
reler). Ainda considere:
Lá no texto do Gênesis pode-se ler
que quando os filhos de Deus possuíram as
filhas dos homens e elas lhes deram filhos.
Bem, tratar os filhos de Deus (no
hebraico האלהים בני) como anjos,
além de não fazer sentido em todo o contexto bíblico, distorce a exegese do
texto.
* Quanto ao que eu posso
compreender da própria Bíblia a cerca do papel dos anjos, vou citar o que
escrevi comentando Mateus 18:
Em toda a Bíblia os anjos assistem na sala do trono para o louvar
(cito por exemplo o Sl 103:20), servem e obedecem só a ele e são enviados pelo
próprio Deus para missões específicas, principalmente quando é preciso agir em
favor dos seus pupilos (lembre de Dn 6:22).
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