Depois dos relatos iniciais da criação nos dois
primeiros capítulos da Bíblia, o capítulo três se abre mudando o enredo com a
narrativa sombria da sedição e queda do primeiro casal. É a gênese de todas as coisas.
Mas, antes de continuar a descrição do horror do
pecado e suas conseqüências desastrosas para o gênero humano, um verso se
destaca, quase que saltando página afora: é Gn 3:8. Nas suas poucas palavras há uma enormidade de
riquezas histórico-espirituais que revelam detalhes da relação Criador/criatura
no Éden e de como esta nova situação comprometeu tal relação.
Nas versões mais tradicionais em língua portuguesa
nós lemos que na viração do dia a voz
do Senhor foi ouvida no paraíso.
Confesso que a expressão hebraica colocada aqui desafia a destreza dos
bons tradutores – mas não é esta a questão aqui. Vamos a texto.
Enquanto ecoa a voz do Senhor em meio ao suave
soprar do vento do fim-de-tarde (e imagino eu isso emoldurado em um por de sol
exuberante: estamos no paraíso!), o jardim se inunda de graça e beleza
santas. Ali transpira um ar de
familiaridade no texto, não sei se pela voz em si, pelo lugar ou pelo momento
específicos do encontro. Com facilidade
também me vejo transportado para lá.
Convenço-me que é simplesmente gostoso estar ali, e percebo ainda que o
próprio Deus se satisfaz também. É por
isso que ele se revela, faz-se presente, fala e compartilha.
Aquele encontro é mais que mera companhia
ocasional, é um caminhar juntos não pela obrigação do destino, mas pelo fluido
gozo de estar junto enquanto trocam passos.
É mais que uma reunião com agenda e liturgia, é um bate-papo
despretensioso de quem encontra um amigo leal e bota os assuntos em dia. É amizade e amor gratuitos e jamais uma
negociação ou troca de favores compromissados.
Penso que era algo assim que Jesus tinha em mente
quando propôs a experiência do quarto fechado em Mt 6:6.
Isto tudo era antes. Agora há o pecado. Deus permaneceu fiel e veio ao encontro. Ele tinha interesse naquilo, porque encontro
bom é quando todos se satisfazem – e aquele era realmente o melhor. Mas o casal não estava mais lá. O pecado maculou a alma e eles se sentiram
sujos, com vergonha, impróprios, inadequados.
E se esconderam...
A voz do Senhor soou como de costume, mas desta vez
a resposta foi apenas seu próprio eco.
Lembro que o profeta Isaias compreendeu o significado daquela situação:
o problema não é Deus. Sou eu e minha
mania de pecar (confira Is 59:1-2).
E Deus perguntou:
— Cadê
vocês? Que tipo de besteira foi que vocês
fizeram?
O que era para ser um encontro no jardim das
delícias, quebrou-se e os cacos da antiga comunhão agora me torturam. Aqui é o apóstolo Paulo que observa que o
grande trunfo do amor de Deus é ele o ter demonstrado no momento de minha maior
fraqueza (leia em Rm 5:8).
E é no encontro com o Senhor que tudo se
refaz. Há resgate e restauração. Mesmo que o pecado imponha desdobramentos
inevitáveis, mas pela graça do descendente da mulher sou convidado a ainda
desfrutar da companhia sagrada.
Ora, culto é essencialmente encontro. E a Bíblia está recheada deles. Mesmo vivendo nesta vida, com o suor no rosto
do ganha-pão, pisando em espinhos e gestando com dores; mas posso desfrutar da
companhia na jornada e da conversa sincera.
No encontro do culto, mesmo hoje, a voz ainda reverbera: note
que eu estou com você (lá em Mt 28:20).
Venha também para este encontro no jardim.
(Texto publicado originalmente na Revista Cristão em Foco na edição de nov-dez/2012)
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