terça-feira, 15 de outubro de 2013

UM ENCONTRO NO JARDIM

Depois dos relatos iniciais da criação nos dois primeiros capítulos da Bíblia, o capítulo três se abre mudando o enredo com a narrativa sombria da sedição e queda do primeiro casal.  É a gênese de todas as coisas.
Mas, antes de continuar a descrição do horror do pecado e suas conseqüências desastrosas para o gênero humano, um verso se destaca, quase que saltando página afora: é Gn 3:8.  Nas  suas poucas palavras há uma enormidade de riquezas histórico-espirituais que revelam detalhes da relação Criador/criatura no Éden e de como esta nova situação comprometeu tal relação.
Nas versões mais tradicionais em língua portuguesa nós lemos que na viração do dia a voz do Senhor foi ouvida no paraíso.  Confesso que a expressão hebraica colocada aqui desafia a destreza dos bons tradutores – mas não é esta a questão aqui.  Vamos a texto.
Enquanto ecoa a voz do Senhor em meio ao suave soprar do vento do fim-de-tarde (e imagino eu isso emoldurado em um por de sol exuberante: estamos no paraíso!), o jardim se inunda de graça e beleza santas.  Ali transpira um ar de familiaridade no texto, não sei se pela voz em si, pelo lugar ou pelo momento específicos do encontro.  Com facilidade também me vejo transportado para lá.  Convenço-me que é simplesmente gostoso estar ali, e percebo ainda que o próprio Deus se satisfaz também.  É por isso que ele se revela, faz-se presente, fala e compartilha.
Aquele encontro é mais que mera companhia ocasional, é um caminhar juntos não pela obrigação do destino, mas pelo fluido gozo de estar junto enquanto trocam passos.  É mais que uma reunião com agenda e liturgia, é um bate-papo despretensioso de quem encontra um amigo leal e bota os assuntos em dia.  É amizade e amor gratuitos e jamais uma negociação ou troca de favores compromissados.
Penso que era algo assim que Jesus tinha em mente quando propôs a experiência do quarto fechado em Mt 6:6.
Isto tudo era antes.  Agora há o pecado.  Deus permaneceu fiel e veio ao encontro.  Ele tinha interesse naquilo, porque encontro bom é quando todos se satisfazem – e aquele era realmente o melhor.  Mas o casal não estava mais lá.  O pecado maculou a alma e eles se sentiram sujos, com vergonha, impróprios, inadequados.  E se esconderam...
A voz do Senhor soou como de costume, mas desta vez a resposta foi apenas seu próprio eco.  Lembro que o profeta Isaias compreendeu o significado daquela situação: o problema não é Deus.  Sou eu e minha mania de pecar (confira Is 59:1-2).
E Deus perguntou:
— Cadê vocês?  Que tipo de besteira foi que vocês fizeram?
O que era para ser um encontro no jardim das delícias, quebrou-se e os cacos da antiga comunhão agora me torturam.  Aqui é o apóstolo Paulo que observa que o grande trunfo do amor de Deus é ele o ter demonstrado no momento de minha maior fraqueza (leia em Rm 5:8).
E é no encontro com o Senhor que tudo se refaz.  Há resgate e restauração.  Mesmo que o pecado imponha desdobramentos inevitáveis, mas pela graça do descendente da mulher sou convidado a ainda desfrutar da companhia sagrada.
Ora, culto é essencialmente encontro.  E a Bíblia está recheada deles.  Mesmo vivendo nesta vida, com o suor no rosto do ganha-pão, pisando em espinhos e gestando com dores; mas posso desfrutar da companhia na jornada e da conversa sincera.  No encontro do culto, mesmo hoje, a voz ainda reverbera:  note que eu estou com você (lá em Mt 28:20).
Venha também para este encontro no jardim.

(Texto publicado originalmente na Revista Cristão em Foco na edição de nov-dez/2012)

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