quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

CARTAS DO TINHOSO – nós e eles


Guardei esta resenha para a Carta VIII das Cartas de um Diabo a seu Aprendiz de C.S. Lewis.  Já apresentamos uma primeira olhada (aqui está o link), lemos sobre o amor e o prazer (esse é o link) e sobre o tempo e a eternidade (e esse é o link).  E eu estou atribuindo o subtítulo de nós e eles.
Mas por que a Carta VIII mereceu um destaque especial.  Respondo de maneira direta: para mim, durante a leitura de todo o texto de Lewis, ela foi a melhor, a mais certeira e profunda.  Dá quase vontade de reproduzi-la por completo aqui.  Mas não vou fazer isso, apenas insistir na recomendação de que C.S. Lewis é leitura obrigatória!
É na Carta VIII onde o diabo instrutor reconhece que o ser humano é, por constituição do seu Criador, um ser essencialmente ambíguo, habita no tempo, mas nunca perde vista a eternidade e devido a isso "eles experimentam a constância apenas em meio à ondulação".  E nessa "série de altos e baixos" é que ficará evidenciado de maneira explícita quem é o "Pai nas Profundezas" e quais são seus objetivos em relação à alma humana de um lado; e quem é o Inimigo do tinhoso e quais os objetivos e seus métodos de trabalho de outro.
Claramente esta diferenciação é feita a partir da percepção de que os momentos de alternância e ondulação na vida humana "são meramente um fenômeno natural" e não resultado de ação ou tentação diabólica.  E, por conseguinte, "as orações feitas no estado de aridez são aquelas que o agradam mais".  As preces do deserto tendem a ser as mais profundas e as que mais tocam a Deus – isto é constatação!
Em linhas gerais, o diabo mesmo descreve suas intenções nos seguintes termos: "para nós, os humanos não passam de comida.  Nosso objetivo é a absorção da vontade deles na nossa, o aumento da nossa própria reserva de egoísmo à custa deles".  E mais: "o que nós queremos é apenas gado que possa acabar nos servindo de comida”.
E mais uma citação, agora da carta anterior, expande a intenção diabólica: "queremos que a Igreja permaneça pequena não apenas para que menos pessoas possam conhecer o Inimigo, mas também para que aqueles que o conhecem possam adquirir a intensidade inquietante e o falso moralismo defensivo de uma sociedade secreta ou de uma panelinha." (E algumas vezes tenho desconfiado que o diabo vem logrando êxito em comunidades pontuais!)
Aqui então a distinção entre o diabo e seu Inimigo se mostra.  Se por um lado o tinhoso anseia por refeição, por outro Deus "deseja servos que possam acabar se tornando filhos".  Ou, como escreve mais o Screwtape de maneira explícita, "nós desejamos sugar, ele deseja retribuir.  Nós somos vazios e queremos ser preenchidos; ele é pleno e, por isso, transborda".
Segue-se que forçosamente a essência, os métodos, os propósitos e objetivos divinos em seu relacionamento com os humanos são declarados pelo diabo ao seu aprendiz: "Ele quer realmente encher o universo com um monte de pequenas réplicas repugnantes de si mesmo".  Só que para isso ele nunca usa a técnica da "tentá-los" para virtude, pois isso seria um disparate, e o objetivo divino não seria alcançado. 
No projeto divino não há espaço para que vontade humana seja atropelada.  Ora, tal realidade espiritual é inconcebível pelo diabo, pois ele não compreende que a idéia do Criador é "fazer duas coisas incompatíveis ao mesmo tempo; as criaturas devem ser um com ele, sem deixarem de ser elas mesmas; simplesmente anulá-las, ou assimilá-las não servirá aos seus propósitos".
Mais.  Ele planejou: "criaturas cujas vidas, numa escala em miniatura, serão qualitativamente como a sua, não porque ele as tenha absorvido, mas porque elas desejam se conformar de livre e espontânea vontade a ele".
E a frase que me saltou os olhos durante a leitura, pois foi capaz de mostrar rica, verdadeira e profundamente simples para descrever a relação entre a soberania absoluta de Deus e a vontade humana é: "... não valeria nada para ele, porque não pode violentá-los, pode apenas encantá-los".
(Bem, eu jamais usaria o verbo poder como uma negativa dita em relação a uma ação de Deus, mas como frase da pena do diabo...)
Vou dizer nas minhas palavras: para nos atrair, Deus não nos violenta a vontade, ele nos encanta – e repito: quanta verdade e beleza há aqui!
Deus nos encanta, fascina, atrai, convida ao amor.  Ele mesmo declara pelo profeta: "Porquanto com amor eterno te amei, por isso com benignidade te atraí" (Jr 31:3).  E Davi, em sua poesia, descreve a fascinação pincelada por Deus que o encantou: "Ó Senhor, Senhor nosso, quão admirável é o teu nome em toda a terra, pois puseste a tua glória sobre os céus!" (Sl 8:1).
Mas ainda tem as ondulações humanas, a aridez da caminhada, os altos e baixos.  E mesmo nesses momentos em que o encanto e a fascinação parecem se diluir "Ele está preparado para intervir um pouquinho, no início.  Irá instigá-los com pequenos sinais de sua presença que, embora minguados, parecem grandes para eles, repletas de doçura emocional".
Pois até nos desertos da vida humana, e eu diria principalmente ali, a derrota do tinhoso é final.  O tentador reconhece: "e se o que restar for apenas a vontade de andar, ele ficará satisfeito até mesmo com seus tropeços. (...) Não haverá um perigo maior para a nossa causa do que quando um ser humano, que não mais deseja, mas ainda assim pretende fazer a vontade de nosso Inimigo, olhar em redor, para um universo do qual todo traço dele parece ter desaparecido, e perguntar-se por que foi abandonado e ainda obedece".
Sei que as linhas se alongaram.  Não tive como evitar.  Comecei reconhecendo que a Carta VIII foi a melhor, a mais certeira e profunda.  O que só comprovou que ler C.S. Lewis é nutritivo para a alma cristã.
Vai ficar faltando algo sobre o brinde proposto por Maldanado.  Mas isso fica para outra postagem.

Continuo depois...

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