A história dos irmãos Caim e Abel e seu desfecho trágico é bastante conhecida. Faz parte das narrativas contadas e recontadas nos quatro cantos da terra.
A malquerença fratricida contada no início do Gênesis descreve bem as consequências da perda do paraíso: a harmonia e irmandade deram lugar às desavenças e segregação.
Nesse sentido, o episódio primordial daqueles irmãos espelha, de certo modo, a história de todos nós. O desentendimento de irmãos que desemboca em morte: isso exemplifica bem a condição humana, desde a sua origem.
Na narrativa bíblica (em Gn 4), Caim, não mais podendo conviver com o êxito do irmão, resolve dar cabo da situação dissimulando e atraindo Abel para uma cilada de morte.
Com o sangue derramado e clamando aos céus, o próprio Senhor vem ao encontro de Caim e o questiona:
— Onde está teu irmão?
Resposta é um pouco de ironia, sarcasmo, desaforo, cinismo, insulto. Ou uma sopa disso tudo:
— O que eu tenho a ver com a vida desse sujeito? Por que eu tenho que dar conta dele?
Aqui não quero analisar a interpelação divina ou os desdobramentos que sobrevieram ao irmão assassino. Quero aproveitar a retórica debochada para pensar o quanto Caim estava equivocado.
Por que tenho que dar conta onde está meu irmão?
E aqui eu identifico pelo menos cinco respostas:
1. Porque só me reconheço enquanto ser humano diante do outro. Ou seja, minha identidade depende do outro.
O Deus que nos criou é constituído em relacionamento Trinitário. Nós, criados a sua imagem e semelhança, só o refletimos à medida que nos relacionamos. Somos seres relacionais por constituição e semelhança com o Criador, então para que eu possa ter minha identidade perfeitamente constituída eu preciso dar conta onde está meu irmão.
É bem provável que muitos homens e mulheres de hoje tenham sua humanidade fragilizada por não olharem para o outro.
2. Porque o Deus que adoro busca pelo próximo. Ou seja, minha adoração a Deus tem que refletir minha preocupação com o próximo.
Se o primeiro mandamento me aponta na vertical para um Deus único que exige adoração, o segundo, semelhante a esse, me descortina o horizontal. Logo, para que minha adoração e culto sejam aceitos perante o Senhor eu preciso dar conta onde está meu irmão.
Talvez aqui esteja o motivo de tantos cultos vazios de adoração - embora cheios de rituais, barulho e música - pois lhes falta a busca pelo próximo.
3. Porque nossa sobrevivência, enquanto espécie ou indivíduos, depende da participação de todos. Ou seja, minha vida só subsiste na interação com o meu irmão.
Isso vale também para nossa sobrevivência como servos de Cristo. Cristo fundou a sua igreja e cuidou para a vida e saúde espiritual dos salvos acontecessem em comunidade. Então implica que para eu possa viver meu cristianismo de modo saudável eu preciso dar conta onde está meu irmão.
Sem dúvida é por tal razão que cristãos hoje de vida e compromisso nominal com o Senhor experimentem um decaimento espiritual ao lhes engajamento com a sua igreja.
4. Porque é bom viver em comunidade. Ninguém é uma ilha. Ou seja, minha vida é melhor quando estou em contato com pessoas que me aprazem.
Entendo que a fala divina lá no início sobre como não é bom que o homem esteja só pode ser aplicada aqui sem dilapidar o texto. É ruim viver só. Por outro lado, uma boa companhia alegra e traz colorida à vida. É por isso que eu preciso dar conta onde está meu irmão.
Há muita gente irritada e irritante por aí - gente de vida chata! E certamente eles são assim por se isolarem de boas amizades e irmandades.
5. Porque o futuro é construção coletiva. Ou seja, meu porvir depende do que fazemos juntos hoje.
Eu sei e creio piamente na obra da graça e em como Cristo virá para resgatar os seus e restaurar a história. Mas é indiscutível que aquilo que fazemos agora implica mutuamente naquilo que nos acontecerá. Daí que para aguardar o futuro eu preciso dar conta onde está meu irmão.
Essa é a razão porque alguns olham para frente e sofrem ansiedade e angústia. O futuro parece cinzento e sombrio porque falta a tantos um projeto digno de vida coletiva.
Assim posso concluir ecoando as palavras do Salmo:
Como é gostoso o elo entre os irmãos. Parece o orvalho que desce suavemente fecundando os montes (Sl 133).
Nenhum comentário:
Postar um comentário