sexta-feira, 20 de setembro de 2019

DE ESCRAVO A IRMÃO CARÍSSIMO – Lendo a Epístola a Filemon


Eis o objetivo principal da Epístola a Filemon: o problema entre o rico Filemon e escravo Onésimo, ambos cristãos. 
Depois de introduzir apresentando-se como prisioneiro de Cristo Jesus e uma palavra de ações de graças pela fé e amor do destinatário, Paulo chega finalmente ao âmago da questão, e o faz de maneira enfática – mesmo não se utilizando de sua autoridade apostólica para ordenar – servindo-se apenas de paralelismo e jogo de palavras riquíssimos.
Vamos trabalhar um pouco com elas – as palavras.
Para provar que realmente houve uma mudança, Paulo joga com o significado do nome Onésimo (Ὀνήσιμος – literalmente: aquele que dá lucro – v. 11).  Ele, que tinha sido inútil (ἄχρηστος), agora, após o contato com o evangelho, tornou-se útil (εὔχρηστος), ou seja, apto para exercer as funções que lhe fossem atribuídas.
Mas a principal diferença entre o antes e o depois do evangelho está em como este serviço seria prestado: antes ele era escravo (δοῦλος – v. 16) mas agora seu trabalho consistia num serviço voluntário (διακονέω – v. 13 – aqui na forma verbal: servir), serviço este que é a base das relações cristãs, e que exige reciprocidade.
Tudo indica que Paulo tinha em mente fazer com Onésimo o que era feito com os libertos da sociedade romana.  Ainda que esta libertação fosse inter amicus, ou seja, sem a intermediação jurídica, o que o apóstolo queria era habilitá-lo a trabalhar como sócio de Filemon – situação prevista na lei romanos acerca dos escravos.  
A Vulgata Latina ajuda a entender este ponto de vista ao se referir ao serviço de Onésimo (v. 13) como ministreret pois era o que se esperava de um carissimum fratum ... et in carne et in Domino (veja o v. 16).  E aqui há indicação segura da lei romana de que a libertação e alforria legal de um escravo consistia inclusive em considerá-lo com sendo igual ao seu senhor perante a sociedade.
Há um outro ponto de vista importante a ser observado: a origem judaica de Paulo.  Ele certamente conhecia os preceitos bíblicos de que um escravo, ao ser liberto deveria lhe ser concedido sustento para o ajudar a começar a viver em liberdade (leia Dt 15:12-14).
Então Paulo apela para que a dívida de Onésimo fosse colocada na sua conta, e também pede para que este seja aceito e que uma dívida de Filemon para com Paulo fosse creditada a Onésimo.  É provável que daí saísse os proventos necessários para começar vida nova.
Sem dúvida, porém, tudo leva a crer que o apóstolo estava indicando uma aplicação direta e prática de Gl 3:28 onde fala na igualdade de todos dentro da comunidade cristã, logo não deve haver nem escravos nem livres (οὐκ ἔνι δοῦλος οὐδὲ ἐλεύθερος – observe que esta última palavra está ausente da Epístola a Filemon).  Isso tudo, contudo, baseado na suprema lei do amor.
Os números da época nos informam que no primeiro século – quando Paulo escreveu a Filemon – havia no Império Romano cerca de 70 milhões de escravos, e esta enorme quantidade de homens, mulheres e crianças à margem das oportunidades do processo social era, sem dúvida, um contingente expressivo capaz de, por uma revolução sangrenta, derrubar o império se houvesse quem os liderasse. 
Na visão cristã paulina, contudo, isso não resolveria o problema das desigualdades sociais: apenas mudaria de foco.  O apóstolo tinha a certeza de que somente um ser humano novo, influenciando a sua comunidade pode produzir relacionamentos inter-humanos novos e assim construir toda uma nova sociedade.  Ou seja, a solução só chegaria através da força revolucionária do amor cristão: através de homens e mulheres que encarnassem o amor a partir de suas comunidades.
Assim é que, lendo a Epístola a Filemon, ela desponta como um desafio emergente para a igreja de Cristo.  A igreja precisa descobrir onde ainda imperam as desigualdades entre os seres humanos para ali injetar uma dose de amor cristão.  Onde há escravos que precisam ser alcançados e transformados em irmãos caríssimos.

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