terça-feira, 29 de janeiro de 2019

SAUDADE – a nossa palavra


Nós, falantes nativos da língua portuguesa, costumamos citar com uma pitada de orgulho que a nossa palavra saudade é exclusividade nossa: não tem tradução completa e exata em outras línguas. Pode ser verdade. Então, como bom brasileiro, deixe-me debulhar um pouco a palavra.
Se você for buscar tradução na internet, vai encontrar algumas citações interessantes. É claro que o tradutor do Google sempre vai oferecer opções – ele sempre faz isso, mesmo que às vezes não se entenda como chegou lá! Mas também, neste caso, sempre tem um quê.
Veja o que achei. Para o inglês a sugestão é missing – mas, invertendo a tradução a sugestão é: ausência. No caso do italiano: brama – invertendo: desejo, sede. Se for espanhol: anhelo – de lá pra cá: desejo. Em francês: envie – que seria: vontade. Para o alemão: sehnsucht – que deve significar: ânsia. Em romeno é o mais interessante: dor – mas não confunda, naquela língua o melhor conceito para a palavra seria: nostalgia (acho que aqui chegou perto!). E se continuasse, sei que sugestões não faltariam, nem peculiaridades.
Então, vamos tentar conceituar. A BBC de Londres, num projeto intitulado The Untranslatable Emotions (literalmente: as emoções sem tradução), tenta explicar para os ingleses o que seria a palavra portuguesa saudade: um anseio melancólico ou nostalgia de uma pessoa, lugar ou coisa que está longe, seja no espaço ou no tempo – uma sonoridade vaga e sonhadora por fenômenos que nem mesmo podem existir na terra natal.
Confesso. Como tentativa de gringo, até que gostei da proposta. Porém, como saudade é uma coisa que a gente sente e sabe que sente, e por isso mesmo nem precisa definir, vou passar a palavra a nossos poetas:
Aguinaldo Silva diz:
Saudade é solidão acompanhada,
é quando o amor ainda não foi embora,
mas o amado já...
Chico Buarque canta:
Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar
E o inigualável Fernando Pessoa faz poesia:
Eu amo tudo o que foi
Tudo o que já não é
A dor que já me não dói
A antiga e errônea fé
O ontem que a dor deixou,
O que deixou alegria
Só porque foi, e voou
E hoje é já outro dia.
Quanto a origem. Já li muita sugestão, coisa de linguista, de historiador, de acadêmico. Entre as principais, uns citam as óbvias raízes latinas onde a saudade seria herdeira da expressão solitate, o que a tornaria irmã da solidão. Outros citam uma ligação com o árabe as-saudá que seria uma espécie de dor no fígado que gera moleza e melancolia.
Pode até ser! Mas pense comigo: um povo como o português que se estabeleceu se lançando em suas naus com destino incerto, buscando terras e riquezas de além-mar, deixando para trás vidas e amores. Um povo que teve que se acostumar a ver sumir velas no horizonte, sem nunca saber se os ventos as traria de volta. Esse povo teve de inventar uma palavra para lusitanos, brasileiros, angolanos e outros patrícios tantos por aí cantarem o fado como sentimento único a ser dito nessa última flor do Lácio.
Assim nasceu a saudade.

Leia mais sobre SAUDADE:
SAUDADE - um hino antigo
SAUDADE - um belo Salmo

(Na imagem lá em cima: o Monumento aos Descobridores em Lisboa/Portugal.
Fonte – http://www.padraodosdescobrimentos.pt/pt
/)

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

JESUS E A COMPREENSÃO DO CULTO


O encontro de Jesus com a mulher de Samaria é singular em vários aspectos (leia a narração em Jo 4).
Nele é possível observar um dos únicos momentos em que o Mestre aborda claramente o tema da adoração e do culto como um ato formal e coletivo, além de dar instruções sobre o mesmo.
Em outras ocasiões Jesus repreendeu Satanás afirmando que a adoração deveria ser exclusiva a Deus (Mt 4:10); falou do quarto fechado como o lugar onde deve principiar a adoração (Mt 6:6) e criticou a tradição farisaica que distanciava os lábios do coração adorador (Mt 15:9). Mas é ali, junto ao Poço de Jacó, que o padrão de adoração pretendido por Jesus Cristo fica mais claro.
Deus é Espírito”. Esta afirmação básica concentra todo o direcionamento que o culto deve ter na igreja. E é por isso que a adoração deve ser em espírito.
Por adoração espiritual entendo aquela que não está necessariamente vinculada a um espaço físico, ou precise de objetos para acontecer.
O altar físico, as vestes, o óleo, os elementos das ordenanças, bem como quaisquer outros recursos históricos podem até ser úteis como instrumentos para que o culto aconteça; mas somente um espírito sincero, que expresse humildade, gratidão e contrição é que prestará uma adoração verdadeira ao Senhor.
Ainda sobre a espiritualidade da adoração quero enfatizar que ritos, tradições e arranjo formal também podem muito ajudar na condução do culto, mas não trarão a nenhuma reunião a presença do Deus espiritual – condição para que haja culto. Só o nome santo de Jesus sendo invocado (leia mais uma vez Mt 18:20).
E indo um pouco além na fala de Jesus: o culto espiritual deve também ser celebrado em verdade – espiritualidade e racionalidade: um é tão fundamental quanto o outro.
Olhando nesta perspectiva a crítica de Jesus ganha significado: “vocês adoram o que não conhecem” (Jo 4:22).
Para Jesus, a verdadeira adoração espiritual tem que incluir o conhecimento daquele a quem prestamos culto. Assim um elemento didático deve sempre estar incluído na adoração: pregação da Palavra, reflexão, estudo e conhecimento verdadeiro de Deus devem ser parte integrante da adoração conforme Jesus instruiu (a instrução ao obreiro Timóteo deve ser sempre lembrada em nossos cultos – veja 2Tm 4:2).
Foi assim que Jesus compreendeu o culto. Foi assim que o ensinou à mulher de Samaria na beira do poço. É assim que devo conduzir minha celebração de culto.


terça-feira, 22 de janeiro de 2019

ABANDONADOS! – contextualizando o Salmo 37:25


Esse é um daqueles textos interessantes – isso mesmo: causa bastante interesse. Suas colocações são pertinazes e andei trabalhando um pouco com o texto. Vamos ver o que podemos aprender.

1. Acho que o verso que você quis citar é o 25. “… nunca vi o justo desamparado ...”

2. Também em relação ao hebraico, uma análise mais profunda não vai ajudar especifica-mente a esclarecer a questão. Dei uma olhada inclusive em outras opções de tradução, tanto em português quanto em outras línguas, e na verdade não há muito o que variar. O fraseado é este mesmo.

3. Ao tomar o verso de um jeito isolado e literal, então parece uma afirmação categórica de uma garantia quanto à velhice e à descendência do justo. Com certeza aqui reside o maior problema: tomar o texto isolado e literal – isso sempre atrapalha mais que ajuda. Então vamos contextualizar e aprender.

4. O Salmo 37 é um texto poético (no caso um poema alfabético). E como poesia deve ser lido e entendido. Ora, não se faz poesia como documento de afirmação doutrinária ou dogmática. Isso mataria o espírito da arte. Poesia é feita para cantar e dar vasão à alma e à fé. E é isso mesmo que Davi faz aqui.

5. Bem, estabelecido este padrão literário, cheguemos às águas mais profundas. O que Davi quis dizer? Que lições espirituais ele salmodia?

6. Antes, um passeio na própria Bíblia. Se for verdade que o justo nunca fica desamparado e que sua descendência nunca passa necessidade, então temos problemas com outras citações. A começar pela parábola do Rico e Lázaro (em Lc 16:19-31). É certo que aqui é só uma parábola e que nem o próprio texto se refere ao mendigo como justo.

7. Vamos mais. E o caso de Jó, ele sofreu um bocado! Apesar de ser reputado como justo! (ênfase no “apesar”). Mas seu fim foi de restauração. Seria aqui já uma pista?

8. Voltando ao NT. João Batista e Estêvão são figuras ímpares e cada um teve uma morte de mártir (confira Mt 14:10-11 e At 7:59-60). Penso que aqui temos exemplo e padrão.

9. E para não embolar mais a questão, é necessário citar outra passagem. Hb 11 fala de homens dos quais o mundo não era digno (verso 38), mas que não chegaram a obter a concretização da promessa.

10. Deixando os exemplos – eles parecem enfatizar que desamparo, abandono e sofrimento nunca é algo estranho ao servo fiel. Vamos ao questionamento: se sou justo e Deus é bom, por que sofro? Esse foi exatamente o que Pedro tentou responder na sua primeira carta. A sugestão que ele oferece é o reconhecimento que aqui somos provados para que nossa fé seja refinada como ouro que passa pelo fogo para sair de lá mais purificado (1Pe 1:6-7 – leia também 4:12-19).

Bem, não sei se está ajudando ou atrapalhando toda essa conversa! Então vou mudar a tática. Acabei de citar Pedro que diz para não estranharmos as dificuldades (em 1Pe 4:12). Então essa história de crente fiel – e missionário no campo – sofrendo não é novidade. Apesar das palavras do Salmo 37, há, de verdade, missionários que foram fieis toda uma vida e por fim são esquecidos por suas igrejas e juntas missionarias.
E aqui não quero nem debulhar a responsabilidade (ou falta de) de quem envia e não cuida! Eles vão dá conta diante do Deus da missão. Com certeza.
Mas, como equacionar esta dura realidade com as palavras sagradas?
Acho que o ponto do abandono já está bem esclarecido, vamos seguir colocando o texto no contexto e compreender a Revelação.
No Salmo, Davi expressa sua fé de maneira genérica, não pontual ou factual. Davi crê que o fim dos ímpios é murcharem como a erva do campo e que ao justo Deus destina sempre um cuidado especial. Esse sim é o direcionamento de nossa confiança e esperança no Senhor.
O fato de haver crente fiel que sofre não invalida a verdade que temos um Deus provedor e sustentador. Como a verdade bíblica de que Deus perdoa pecados não exclui a dura realidade de que vivemos nesta vida sujeitos a toda espécie de intempéries.
Nosso Deus é fiel e completamente revestido de amor leal e nunca abandona seus filhos. Independente do desdobramento histórico que aconteça. Lembre: Pedro e Tiago foram perseguidos a mando de Herodes, um morreu ao fio da espada e outro foi visitado pelo anjo e liberto (leia em At 12:1-8).
Por isso cantamos: “Se Deus fizer, ele é Deus. Se não fizer, continua sendo Deus”. E é verdade!
O que Davi canta no Salmo é a certeza de nunca colocar seu olhar, nem sua fé e esperança nas circunstâncias pois todas elas são passageiras, mas confiar exclusivamente num Deus que é capaz de mostrar seu carinho e atenção aos seus servos de maneira perene (considere 2Co 5:5-8).
E tem mais. O próprio Paulo assevera que as aflições do tempo presente em nada podem assemelhar ao que nos está reservado (em Rm 8:18). Se eu nunca abandonar esta firmeza, Deus vai me fazer voar por sobre as circunstâncias (a oração de Habacuque também é poética em Hc 3:17-19).
Para terminar, não poderia deixar de citar Apocalipse. Quando da abertura do quinto selo (em Ap 6:9-11), os que haviam sido mortos pelo testemunho clamaram: “Até quando?” E lhes foi dito que esperassem apenas um pouco mais até que Deus completasse sua ação de purgação histórica e trouxesse tudo para o seu devido lugar. A esperança deve está baseada nas promessas e não na realidade.
É verdade. O crente sofre – isso é a história acontecendo diante de nossos olhos – mas isso não invalida a declaração bíblica. Ignorar essa realidade baseada numa fé ingênua, tirada de uma frase fora de contexto não ajuda em nada a amadurecer a minha fé, nem a vencer as circunstâncias. Só me faz revoltado e frustrado.
O que o Salmo diz, e aqui em consonância com todo o ensinamento bíblico e cristão, é que devo confiar, como Davi, que o fim já está estabelecido por aquele que tem a história em suas mãos e vai destinar os ímpios arrogantes ao fogo e dará justa retribuição aos seus amados. Isso sim, faz com que não desista na missão – isso é fé genuína!
Por isso:

Confie no Senhor e faça o bem;
assim você habitará na terra
e desfrutará segurança.
Deleite-se no Senhor
e ele atenderá aos desejos do
se coração.
Entregue o seu caminho ao Senhor
confie nele, e ele agirá (Sl 37:3-5).



sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

VINHO E ODRES NOVOS


Três dos Evangelhos citam que Jesus constatou a incoerência de se colocar vinho novo em odres velhos (confira Mt 9:17 / Mc 2:22 / Lc 5:37-38). Desta observação simples e óbvia para seus ouvintes, o Mestre deixou para nós lições preciosas para a vida cristã.
Em primeiro lugar, é bom lembrar que o vinho novo está associado ao evangelho que Jesus veio trazer e suas consequências na vida do ser humano (Jo 2:1-11) e os odres velhos à doutrina de fariseus (Mt 16:6-12); o que nos leva a compreender que entre eles a associação é inconcebível.
Mas devemos ir além. Jesus trabalha com o tema da necessidade de haver coerência entre o evangelho que nos faz nova criatura e os desdobramentos que isto deve implicar em nossa vida. Aqui a alusão é direta àqueles que evidenciam uma vida de espiritualidade sem que isto lhes traga compromissos cotidianos.
O vinho novo que Jesus oferece é derramado no coração de homens e mulheres que se entregam ao Senhor. O conselho de Pv 23:26 é exatamente assim: meu filho, dê-me o seu coração. O vinho novo só pode ser fruído em um coração inteiramente entregue ao Pai celeste.
Agora é fundamental ler também a frase seguinte: mantenha os seus olhos em meus caminhos. Vinho novo em odres velhos não é aceitável. É preciso nutrir condições para que o vinho novo seja oferecido.
Finalizando, reafirmamos que Jesus requer tudo novo: o vinho que ele oferece e os odres que lhes entregamos para que nossa vida experimente tudo o que o Mestre faz. Tudo novo! Mas graças a Deus que somente o próprio Cristo nos proporciona isto: Estou fazendo novas todas as coisas (Ap 21:5). 
Aleluia!

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

A ROSA VERMELHA


Entre as belas canções que trago na minha memória e que ajudam a preencher de sons e significados a minha vida e caminhada cristã está a música A Rosa Vermelha.
Quanto à letra, ela foi escrita em 1979 por Isabel Pacheco quando estudante na Paraíba. Chegou depois a ser gravada e regravada diversas vezes. Porém acho que a versão mais conhecida de todas (pelo menos para mim) seja a de Luiz de Carvalho, no álbum Meus Hinos Queridos – vol. 3 de 1993.
Mas certamente não são dados compilados sobre a letra, sua história ou suas versões, que fazem este poema cantado ocupar seu lugar devido em nossa fé cristã.
Cantamos o que cremos, está em nosso DNA. Essa é a nossa forma bem cristã de afirmar e expressar nosso credo, nossos valores e nossa adoração. A nossa tradição e herança cristã dizem que a música é a nossa distinção.
Então é fácil perceber como as palavras da música de Isabel Pacheco tornam-se poderosas em afirmar e demarcar nossa fé (quanto à música em si, melodia, harmonia e ritmo vão extrapolar minhas observações aqui – além de incluir questões de gosto e estética. Vamos nos concentrar na letra).
A inspiração vem claramente da profecia sobre o Servo Sofredor e de como ele tiraria de seu momento de dor e sofrimento forças para reverter a situação e atribuir graça e bênção a todos.
Pelas suas pisaduras fomos sarados.
Com essa referência, a canção descreve Jesus como uma rosa vermelha que teve o seu sangue vertido e derramado no chão, tendo sido atingido pela solidão da morte e ali ficando por três dias (sobre a relação entre Jesus e a Rosa de Saron não vou abordar aqui, já tratei em outro post – veja aqui o link).
Mas aí chegamos ao ponto forte, a estrofe que sempre mais me marcou e ainda agora me faz cantá-la e relembrar de cor suas palavras: Mas o seu perfume se apega à mão que a esmagou, e quem a feriu concedeu perdão. E tem mais: até seus espinhos, são marcas de amor.
Gosto particularmente da poesia desse fraseado. Minha fé e confiança, toda minha esperança de glória, o sentido e razão de minha crença e adoração estão nesses versos. Sou cristão porque sirvo a um Senhor que se entregou voluntariamente ao sacrifício, e fez isso por conta de meus pecados. Foi em meu lugar que a rosa se deixou ser esmagada.
Mas neste ato de absoluto amor ele está de maneira única e irreparável impregnando seu perfume em mim. Ao feri-lo com meus pecados, foi tomado pelo seu perdão.
A canção ainda fala da flor que novamente brotou ao terceiro dia e do chamamento para fazer parte do seu jardim, tudo isso está claramente no meu credo. Sem dúvida, é o perfume da Rosa Vermelha em mim que me faz continuar a viver e caminhar. Para a glória dele.



sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Parábola das coisas – O MAPA


Desde tempos muito antigos, é uma prática claramente humana desenhar o mundo em que vive, as coisas e os espaços. Prova disso são as pinturas de Lascaux na França ou da Serra da Capivara no Piauí.
Nossa capacidade de ver, compreender e representar a realidade ao redor nos fez sermos humanos. Foi com nossa arte em desenhar o mundo e lhe atribuir significado que a existência passou a ter contornos humanos.
Sei que lá nos começos as pinturas rupestres indicavam apenas animais, plantas ou outras coisas do seu mundo físico conhecido. Mas daí vieram os rituais, símbolos, ideias, abstrações e suas representações.
O passo seguinte não foi tão longo. Do desenho das coisas para o desenho dos espaços. Do registro do mundo físico para a demarcação do mundo humano.
Assim os mapas passaram a fazer parte de nossa existência e realidade e lhe apresentar a sua compreensão.
Mas, nesta linha de entendimento, como posso definir o que é um mapa. Que coisa é essa?
Diria, grosso modo, que um mapa é um desenho geral de um lugar, um espaço. Ou mais: o desenho do que existe, do que está lá. E não apenas elevações e vales, rios e árvores; mapa pode ser a descrição da natureza, mas é também o registro do que fazemos com ela, como a interpretamos, como humanizamos e lhes damos contornos. Urbi et orbi.
Mesmo com o acúmulo das modernas tecnologias, o conceito básico continua o mesmo. Fotos de satélite, topografia, GPS, geodésia, cartografia, geografia. Também sociedade, política, economia, exércitos, etnias, religiões. E os mapas continuam norteando ou orientando nossa concepção do lugar em que vivemos – apontando o norte, indicando o leste.
Então comecei a pensar sobre como essa coisa – o mapa – poderia me servir de ilustração, de parábola para ver e compreender meu mundo, minha vida. E realmente não me veio nenhuma ideia além do lugar-comum: a Palavra de Deus é o nosso mapa.
Mesmo sendo lugar-comum, a comparação da Palavra de Deus, a Bíblia, como um mapa pode indicar onde as coisas estão, ou deveriam estar, o que fizemos com o mundo, como o construímos e desconstruímos. Onde o Criador colocou cada coisa e onde colocamos nossas marcas e interferências.
Mas num mapa, algumas observações pertinentes precisam ser tomadas. Mapas nos orientam a olhar em direção ao nascer do sol e nós transformamos a fascinação em adoração. Mapas nos apontam fronteiras e limites e nós evitamos comer a fruta interdita. Mapas indicam fontes de água e nós nos achegamos para saciar. Mapas podem descrever caminhos e nós é que decidimos seguir o Caminho.
É verdade: desenhamos e construímos mapas para dar contornos e significados a nossa existência, deixar mais humano o mundo cru, tornar um espaço em meu canto, meu lugar.
E que ele me guie à casa do Pai.
(Na imagem lá em cima, o mapa de Luís Teixeira de cerca de 1580,
indicando as capitanias brasileiras e o Meridiano de Tordesilhas.
O original atualmente se encontra na Biblioteca da Ajuda – Lisboa/Portugal
)


terça-feira, 8 de janeiro de 2019

O ÓRGÃO E O CULTO – um pouco de provocação


Remexendo em algumas leituras antigas, encontrei a citação a seguir num livro do Jaci Maraschin de 1996. Ela, a citação, foi tirada de um panfleto de cunho puritano, publicado em 1586, intitulado “Petição de todos os verdadeiros cristãos à Casa do Parlamento”. Veja:

Devem ser destruídas todas as igrejas-catedrais onde o serviço de Deus é grandemente ultrajado por meio de órgãos de tubo, cantorias, campainhas e o costume de se jogar os Salmos de um lado para outro do coro, com os guinchos dos coristas que cantam fantasiados (como aliás, todos os outros) com sobrepelizes brancas; alguns deles com chapéus e frívolas capas, imitando os usos do Anticristo, o Papa, esse homem pecaminoso e filho da perdição, com seus seguidores descrentes e espertalhões.

Como coloquei lá no título, aqui só quero fazer um pouco de provocação sobre o tema. É verdade que com o tempo, o estudo, a vivência, a gente acaba formando conceitos sobre essas coisas, e talvez não seja muito fácil se livrar deles – até quando se está apenas provocando.
Antes, porém, de atentar para a citação puritana e ver o que ela nos provoca, entendo que é bom voltar um pouco na história.
Como conceito geral, o órgão é um dos mais antigos instrumentos musicais do Ocidente. O órgão (a partir do grego: ὄργανον – instrumento – e por falar em grego, esta palavra não consta do NT), teve sua ideia inicial esboçada por um tal de Ctesíbio de Alexandria no século III a.C. quando resolveu juntar uma flauta com um sistema hidráulico de injeção de ar nos tubos. Daí foi consequência e desenvolvimento da ideia.
O órgão tem sido, em geral, o queridinho da música por séculos pelos lados de cá do mundo, tanto como acompanhamento de liturgias e adoração originalmente pagãs e depois cristãs, quanto para música de puro entretenimento. Bach o usou e explorou até quase seus limites com suas composições e fugas. E Mozart chegou a se referir a ele como o rei dos instrumentos.
Também vale a citação de seus parentes próximos, entre eles o harmônio, a gaita-de-foles e o acordeon – ou melhor, a sanfona (a ideia é a mesma, só muda a embalagem!).
Nas celebrações cristãs, a primeira referência consistente que se tem sobre o uso do órgão nos cultos é do século VII quando o Papa Vitalino o incorporou na liturgia. E o Concílio Vaticano II reafirmou:

Tenha-se em grande apreço na Igreja latina o órgão de tubos, instrumento musical tradicional e cujo som é capaz de dar às cerimônias do culto um esplendor extraordinário e elevar poderosamente o espírito para Deus
(Artigo nº 120).

Voltando a citação puritana – já está ficando grande a revisão histórica.
Nos meados do século XVI, a reforma inglesa tinha apenas maquiado a doutrina, a liturgia e a devoção. E o povo cristão anglicano buscava por uma vida de maior santidade e pureza e, certamente, um culto que os aproximasse mais de Deus.
Foi nesse contexto que a liderança puritana se dirigiu ao Parlamento e requereu basicamente três coisas: (1) A destruição das igrejas-catedrais; (2) a retirada dos órgãos do culto – eles ultrajam o serviço a Deus; e (3) a mudança na liturgia, excluindo as responsivas e os corais cujos paramentos e fardas mais pareciam coisa de católicos romanos.
É verdade que não consegui encontrar nenhuma resposta oficial dada pelo Parlamento Britânico à Petição Puritana. Mas fica o questionamento e a provocação: seriam os grandes templos, o solene som do órgão e as estruturadas liturgias congregacionais parte essencial de nossa fé, tradição e culto? Ou eles foram inovações às quais já nos acostumamos e nem ao menos queremos remexer?
E mais: que outras formas e jeitos já estamos incorporando ao nosso cristianismo? Teremos a mesma coragem e ousadia de interpelar pela defesa e pureza de nossa fé e culto?
São apenas provocações.
Ah! E sim! Eu, particularmente, gosto bastante do som do órgão.


sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

MAIS O QUE FAZER


Ora, veja bem! Eu tenho mais o que fazer!!!
Você com certeza já deve ter dito uma frase como essa. E talvez a repita com certa frequência. É que ela é bem nossa, bem humana. Dependendo do contexto e da entonação pode indicar irritação, estresse, raiva, pressa, desprezo ou outras tantas emoções e reações.
Mas penso que realmente por detrás de cada uma dessas exclamações, o mais o que fazer deixa escapar um estabelecimento de prioridades. Se diante de algo – ou alguém – eu declaro que há "algo mais" é que aquele algo precisa ser relegado a segundo plano antes que um outro algo mais urgente e importante ocupe a primazia.
Calma! Antes de você dizer que tem mais o que fazer – confesso que o parágrafo anterior ficou teórico e chato – permita-me folhear as páginas bíblicas para provar meu argumento. Com exemplos fica mais fácil.
Explícita e literalmente eu não me lembro de esta frase dita por ninguém na Bíblia. Mas veja que foi mais ou menos isso o que o adolescente Jesus disse aos seus pais quando encontrado no templo discutindo (a citação é de Lc 2:49). A prioridade era a casa do Pai.
Na entrada de Jericó, o cego que clamou pelo Filho de Davi ouviu para deixar o Mestre em paz pois ele tinha mais o que fazer. No episódio, porém, o próprio Jesus recolocou as coisas nos seus devidos lugares dando atenção ao cego (aqui Lc 18:35-43). A prioridade era o cuidado com o necessitado.
Um pouco além, o apóstolo Paulo insistiu em que ninguém o importunasse com picuinhas judaizantes pois ele tinha mais o que fazer (o texto está em Gl 6:17). A cruz e as marcas de Cristo que ele trazia no corpo eram sua prioridade absoluta.
Também em carta paulina encontro o que entendo ser a melhor demonstração de estabelecer prioridades. É bem conhecido o Hino Cristológico que pode ser lido em Fl 2:5-11. Aqui me permitirei uma leitura alternativa.

Cristo Jesus, mesmo sendo eternamente divino, estabeleceu como prioridade esvaziar-se para se tornar humano. E como homem, fez mais em deixar-se morrer de forma dolorosa e humilhante numa cruz. Mas o próprio Deus, tendo mais o que fazer, o exaltou de uma forma única e soberana a fim de que diante dele todo joelho se dobre e toda língua confesse que ele, e somente ele, é o Senhor, para a glória de Deus-Pai.