Nascer num lar cristão traz consideráveis
vantagens na formação religiosa e moral. Mas também, se acostumar a um ambiente assim leva ao hábito e ao
costume com determinadas formalidades e expressões que acabam as tornando ocas.
— Sei o que é isso.
Na semana em que todos os cristãos celebram
a sua principal data: a páscoa , esse tipo de constatação com a qual eu abri
essa reflexão tem muito a dizer.
A história conta que enquanto os judeus
celebravam o seu antigo ritual de Pessach,
Jesus o ressignificou estabelecendo as bases de uma nova aliança com Deus. Dali ele sairia ao Getsêmani, para, sob
traição, ser entregue, ser julgado e por fim morrer no Calvário. Assim temos agora a Páscoa cristã.
É essa narrativa contada e recontada - ouvida,
representada e decorada desde a infância - que, de tanto repetida, já não mais
toca, nem choca, a nossa cristandade costumeira.
Assim a Páscoa se repete apenas como mais
uma data, mais um ritual. E mesmo os
ingleses a chamando de Easter Holiday,
acaba sendo somente mais um feriado em nosso calendário dito eclesiástico - ou
cristão.
E os sinos cristãos ano após ano, rito após
rito, Páscoa após Páscoa, parecem se repetir badalando um som vazio e disperso,
já não mais me trazendo à contrição que o momento impõe.
Então sou alcançado em meio à repetição
mecânica dos autos e festejos da Páscoa pela advertência do texto bíblico:
"Saiamos, pois, a ele fora do
arraial, levando o seu vitupério" (Hb 13:13).
Mas nem essas palavras conseguem outra vez
atribuir peso e significado ao momento pascoal. Vitupério. Essa é daquelas palavras que nos acostumamos a
encontrar na versão mais tradicional de nossas Bíblias em português - e hoje só
encontramos lá e no dicionário.
(Acho que João Ferreira de Almeida devia
usar no seu dia-a-dia, lá no século XVII, palavras como vitupério, circuncisão,
concupiscência, propiciação ou serôdia - hoje eu só as conheço nas versões
antigas da Bíblia.)
Vitupério, segundo o entendimento da palavra
grega usada no texto (ὀνειδισμός) se refere àquela
vergonha moral e social, àquele vexame público que nos é imposto, àquele
constrangimento do qual tudo o que nos resta é querer fugir e escapar.
Acho que o termo moderno bullying, que incorporamos do inglês,
expressa com alguma precisão o que os gregos queriam dizer com essa palavra.
Assim então eu sou instado a celebrar a Páscoa
pelo autor do texto aos Hebreus:
"Saiam
do meio do burburinho e se juntem a Cristo fora da agitação dessas celebrações
rituais, lá onde ele suportou de vontade própria a vergonha do nosso bullying".
A celebração da Páscoa é isso, é mais do que
apenas uma oportunidade de repetir uma história, é a certeza da vitória de
Cristo sobre o vitupério, a vergonha, o bullying
massacrante por nossos pecados.
Ele voluntariamente levou sobre si os meus
pecados e tomou o meu lugar no vitupério. O castigo que me traz a paz estava
sobre ele e pelas suas feridas minha vergonha foi satisfeita (posso ler Is 53:5
nesses termos).
Com uma convicção assim, a Páscoa é mais que
ritual costumeiro ou feriado no calendário, o vitupério é mais que uma palavra
difícil, a festa é mais que autos bonitos. É a certeza e celebração da restauração da
minha dignidade humana como filho e imagem de Deus. A minha razão de ser e existir. Aquilo que me identifica.
E eu o celebro com a mais sincera gratidão
pois já livre da humilhação pública e exposição eterna do meu pecado, posso
agora sentar nos lugares santos.
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