sexta-feira, 10 de abril de 2020

O VITUPÉRIO DE CRISTO


Nascer num lar cristão traz consideráveis vantagens na formação religiosa e moral.  Mas também, se acostumar a um ambiente assim leva ao hábito e ao costume com determinadas formalidades e expressões que acabam as tornando ocas.
— Sei o que é isso.
Na semana em que todos os cristãos celebram a sua principal data: a páscoa , esse tipo de constatação com a qual eu abri essa reflexão tem muito a dizer.
A história conta que enquanto os judeus celebravam o seu antigo ritual de Pessach, Jesus o ressignificou estabelecendo as bases de uma nova aliança com Deus.  Dali ele sairia ao Getsêmani, para, sob traição, ser entregue, ser julgado e por fim morrer no Calvário.  Assim temos agora a Páscoa cristã.
É essa narrativa contada e recontada - ouvida, representada e decorada desde a infância - que, de tanto repetida, já não mais toca, nem choca, a nossa cristandade costumeira.
Assim a Páscoa se repete apenas como mais uma data, mais um ritual.  E mesmo os ingleses a chamando de Easter Holiday, acaba sendo somente mais um feriado em nosso calendário dito eclesiástico - ou cristão.
E os sinos cristãos ano após ano, rito após rito, Páscoa após Páscoa, parecem se repetir badalando um som vazio e disperso, já não mais me trazendo à contrição que o momento impõe.
Então sou alcançado em meio à repetição mecânica dos autos e festejos da Páscoa pela advertência do texto bíblico: "Saiamos, pois, a ele fora do arraial, levando o seu vitupério" (Hb 13:13).
Mas nem essas palavras conseguem outra vez atribuir peso e significado ao momento pascoal.  Vitupério.  Essa é daquelas palavras que nos acostumamos a encontrar na versão mais tradicional de nossas Bíblias em português - e hoje só encontramos lá e no dicionário.
(Acho que João Ferreira de Almeida devia usar no seu dia-a-dia, lá no século XVII, palavras como vitupério, circuncisão, concupiscência, propiciação ou serôdia - hoje eu só as conheço nas versões antigas da Bíblia.)
Vitupério, segundo o entendimento da palavra grega usada no texto (νειδισμς) se refere àquela vergonha moral e social, àquele vexame público que nos é imposto, àquele constrangimento do qual tudo o que nos resta é querer fugir e escapar.
Acho que o termo moderno bullying, que incorporamos do inglês, expressa com alguma precisão o que os gregos queriam dizer com essa palavra.
Assim então eu sou instado a celebrar a Páscoa pelo autor do texto aos Hebreus:
"Saiam do meio do burburinho e se juntem a Cristo fora da agitação dessas celebrações rituais, lá onde ele suportou de vontade própria a vergonha do nosso bullying".
A celebração da Páscoa é isso, é mais do que apenas uma oportunidade de repetir uma história, é a certeza da vitória de Cristo sobre o vitupério, a vergonha, o bullying massacrante por nossos pecados.
Ele voluntariamente levou sobre si os meus pecados e tomou o meu lugar no vitupério. O castigo que me traz a paz estava sobre ele e pelas suas feridas minha vergonha foi satisfeita (posso ler Is 53:5 nesses termos).
Com uma convicção assim, a Páscoa é mais que ritual costumeiro ou feriado no calendário, o vitupério é mais que uma palavra difícil, a festa é mais que autos bonitos.  É a certeza e celebração da restauração da minha dignidade humana como filho e imagem de Deus.  A minha razão de ser e existir.  Aquilo que me identifica.
E eu o celebro com a mais sincera gratidão pois já livre da humilhação pública e exposição eterna do meu pecado, posso agora sentar nos lugares santos.

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