quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

O SACERDÓCIO DE MELQUISEDEQUE


 

O patriarca – ainda chamado de Abrão – empreendeu uma campanha para libertar seu sobrinho Ló e, ao voltar após a vitória, encontrou-se com o rei de Sodoma e com Melquisedeque, descrito como rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo – sem informações genealógicas, ligações etnográficas, nem política ou coisa parecida, mas como um adorador do Deus do Alto.

Aqui, o texto no Livro de Gênesis (14:18-20) é bastante resumido, mas, mesmo assim, pode trazer lições importantes.  Em outras palavras, o fraseado apenas nos oferece “migalhas” de informações, mas podemos segui-las para chegar a verdades e lições relevantes (eu estou me lembrando do conto de “João e Maria”).

Seguindo o texto com suas migalhas de apontamentos:

No Vale do Rei, Melquisedeque recebeu Abrão com pão e vinho.  Segundo as tradições do Oriente, essa seria uma forma honrosa de receber um herói ou guerreiro vitorioso.  Com certeza ali nenhum deles tinha noção de que esse oferecimento poderia servir como um referencial para o pão e vinho que viria a simbolizar a oferta pascal de Jesus na última Ceia (1Co 11:23-29).

Próxima migalha: o sacerdote/rei pronuncia palavras de bênção para Abrão pelo Deus Altíssimo, criador de céus e terra.  O Deus que habita nas alturas e está sobre toda forma de autoridade, entidade, divindade ou crença é quem fecunda as suas bênçãos ao patriarca.

E à bênção seguem as palavras de adoração ao Altíssimo, reconhecendo que todo e qualquer sucesso e vitória se devem unicamente a ação divina.

 

E o Deus das Alturas seja louvado
[pois é ELE] quem entrega em tuas mãos os teus inimigos.
 (Gn 14:20).

 

Depois da bênção, Abrão lhe oferece o dízimo.  Essa também é uma migalha espiritualmente relevante.

Na sequência da leitura do texto, o rei de Sodoma indica que Abrão fique com todos os despojos da guerra.  E, embora fosse do patriarca por direito de guerra, ele se recusa a tomar posse do espólio (Gn 14:21-24).

Então, é com essa percepção que Abrão entrega a décima parte do que seria dele por direito a Melquisedeque.  Tal atitude é um reconhecimento explícito de inferioridade: ao ofertar o dízimo, Abrão estava atestando que o sacerdote do Altíssimo lhe era superior. 

A humildade sempre convém a quem oferta!

 

E essa atitude me leva então ao texto de Hebreus no NT.

 

O tema central do texto aos Hebreus é a superioridade de Cristo – desde as primeiras expressões, quando ele compara as palavras dirigidas aos profetas com o que Deus falou pelo seu Filho (Hb 1:1-4).

Assim é que, comparando o sacerdócio levítico da antiga aliança com a oferta própria e voluntária entregue por Jesus Cristo estabelecendo uma nova aliança (Hb 7:22), essa nova aliança é incomparavelmente maior e melhor.

O argumento é o seguinte:  quem abençoa é mais importante do que aquele que é abençoado (confira Hb 7:7).  Ora, se Melquisedeque abençoou Abraão e dele recebeu o dízimo é porque sua ordem sacerdotal é superior à do patriarca, e, logicamente, dos seus descendentes (os filhos de Levi). 

Da mesma forma, a antiga aliança baseada na Lei mosaica (descendente de Abraão) é inferior à nova aliança feita em Cristo (da ordem de Melquisedeque). 

As ofertas trazidas aos sacerdotes levitas eram transitórias, incompletas e fadadas a se encerrar para serem suplantadas pela oferta definitiva, perfeita e superior apresentada por Cristo.

Compare mais: os levitas da antiga aliança eram filhos de Arão – de onde vem seu sacerdócio.  Jesus, por sua vez, como Filho de Deus, foi estabelecido por Deus mesmo como o Sumo-Sacerdote na ordem de Melquisedeque (Hb 5:10).

E mais: se os pecados na antiga aliança eram lavados periodicamente pelo sangue das ofertas, Hebreus nos diz que Cristo a si mesmo se ofereceu a Deus como sacrifício perfeito.  Assim, o sangue de Cristo – sacerdote da ordem de Melquisedeque – trouxe purificação às pessoas por dentro, tirando as culpas, para que pudessem servir ao Deus vivo (Hb 9:12-22).

Por isso, o Texto Sagrado conclui que Jesus Cristo é digno de maior gloria do que Moises (Hb 3:3).

 

Na imagem lá em cima: um mosaico representando os personagens Abraão e Melquisedeque na Capela de São Marcos em Veneza / Itália (concluída no Século XVII).

 

Você pode ver uma análise exegética rápida sobre o personagem Melquisedeque no artigo MELQUISEDEQUE– o personagem (link aqui).

 




Sugiro a leitura de um ensaio sobre o livro de Hebreus que pode ser encontrado no meu livro ENSAIOS TEOLÓGICOS

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Conheça também outros livros:
TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
DE ADÃO ATÉ HOJE – Um estudo do Culto Cristão
PARÁBOLA DAS COISAS

terça-feira, 17 de dezembro de 2024

MELQUISEDEQUE – o personagem

 

Aproveitei sua sugestão para fazer uma pesquisa sobre esse personagem interessante citado na narrativa bíblica.

 

Antes: era uma pessoa real ou não?

A minha resposta direta é que se trata de um personagem bíblico – isso para mim é suficiente para dar crédito a sua narração.  Quantos aos detalhes biográficos e figurativos: esses nem a própria Bíblia nos fornece indicações seguras – o autor aos Hebreus diz que “nada se sabe sobre seu nascimento e morte” (Hb 7:3).

Eu já ouvi por aí alguns comentadores falando sobre Melquisedeque não ser um personagem histórico – mas também já li coisa parecida de vários outros.  Repito: é bíblico, e isso quer dizer que olho para ele com filtro teológico e não histórico-científico.

Quanto a tipologia (ou prefiguração): vários rabinos judeus se referem a ele como uma referência a Davi – por ser rei/sacerdote de Salém.

Também diversos autores cristãos o comparam a Jesus – principalmente baseado na interpretação do texto aos Hebreus (embora não esteja explícito ali).

 

Vamos ver o que o texto original tem a nos dizer:

No AT (em Gn 14:18-20), Melquisedeque aparece na narrativa de Abraão quando o patriarca, depois de ter vencido alguns reis canaanitas, encontrou-se com ele, foi saudado com pão e vinho e este o abençoou pelo Deus Altíssimo.

Seu nome em hebraico – מלכי־צדק – significa literalmente Rei de Justiça ou Rei de Retidão.  A LXX em grego transcreveu como Μελχισέδεκ – mesma grafia usada em Hebreus no NT.  E a Vulgata em latim usou Melchisedech.

Ele é citado como sendo rei de Salém (מלך שלם).  Sobre o ponto cartográfico, a cidade também é de localização incerta.  Porém o mais provável, por toda a base tradicional e convergência geográfica, é que se trate de uma forma arcaica do nome da cidade de Jerusalém (ירושלם).  Pista: o Sl 76:2 usa mesma grafia hebraica de Gn 14:18 para se referir à cidade edificada sobre o Monte Sião.

Davi faz outra única referência a ele no AT: no Salmo messiânico que diz do juramento de Deus sobre a “ordem de Melquisedeque” (Sl 110:4).  Entendo que foi daqui a inspiração do autor aos Hebreus no NT, pois esse Salmo é citado em Hb 7:17-21).

Também importante: Melquisedeque é o primeiro personagem bíblico a ser reconhecido como “sacerdote de Deus Altíssimo” (כהן לאל עליון – Gn 14:18).  Mais uma vez, subsídio para o argumento de Hebreus.

No NT, Melquisedeque só é citado pelo autor aos Hebreus, no argumento comparativo entre o sacerdócio levítico e o ministério de Jesus (o argumento começa no final do capítulo quatro, em nossas edições, e a primeira citação do seu nome vai aparecer no verso Hb 5:6).

Detalhe: para o autor aos Hebreus, Melquisedeque não era o próprio Jesus aparecido numa “cristofania” prévia, mas alguém da mesma ordem sacerdotal e parecido com Melquisedeque (confira Hb 7:15).

Mais uma curiosidade: Flavio Josefo faz referência a Melquisedeque em seu livro Antiguidades apenas como “rei de Salém e sacerdote do Deus Altíssimo, que viveu nos dias de Abraão” – e nada mais!

 

 

Veja no artigo O SACERDÓCIO DE MELQUISEDEQUE uma leitura bíblico-teológica sobre esse personagem fascinante (link aqui).

 

terça-feira, 10 de dezembro de 2024

SOBRE DONS E MINISTÉRIOS



A distribuição dos dons espirituais é administrada pelo próprio Espírito que os outorga conforme sua vontade e querer.  No estudo dos textos bíblicos, porém, podemos entender que tal distribuição não se dar de forma aleatória e despropositada – como se atendesse apenas ao “capricho” divino.

Primeiramente, contudo, é preciso ser notado que a manifestação de dons não está ligada a graus de santidade.  É obrigação de todo e qualquer cristão buscar ser santo (1Pe 1:16) e que o processo de santificação nos leva à gloriosa experiência de contemplar o Senhor (Hb 12:14) – não ao crédito de dons.

Para explicar sobre como os dons funcionam na igreja, o apóstolo Paulo usou a ilustração do corpo, afirmando que a igreja é o Corpo vivo de Cristo (1Co 12:27).  E assim deve funcionar.

Com esse entendimento, podemos compreender que Deus mesmo começa identificando os problemas específicos da igreja, suas faltas, carências e necessidades sociais, físicas e espirituais que precisam ser sanadas.  Porque Cristo tem profundo amor por sua igreja, ele sempre está cuidando para que seu funcionamento, vida e relacionamentos sejam saudáveis.

Tendo identificado as necessidades da igreja, o Espírito então capacita os seus membros (apóstolos, profetas, mestres etc. – 1Co 12:28) com habilidades espiritualmente distintas. 

Assim a distribuição de dons em meio a uma congregação de fé se dá a partir do reconhecimento da necessidade daquela comunidade em suprir as suas carências.  Isso nos leva a entender que uma igreja como a do Corinto – abarrotada de problemas espirituais e morais – precisou ser abastecida de diversos dons para que fosse então restaurada.

Prosseguindo então nessa compreensão: depois de concedidos os dons – que são as capacitações espirituais para as tarefas – o próximo passo é coloca-los em prática para proveito da própria igreja.  Esse é o momento quando o dom se transforma em ministério.  O dom em si, sozinho, tem pouco proveito espiritual, mas quando ele é posto em ação transforma-se em ministério.

Então o Corpo de Cristo é edificado e todos juntos caminham em direção à maturidade, que é atingir a medida da plenitude de Cristo (Ef 4:11-14).

Essa é a sequência: primeiro Deus identifica as carências; depois o Espírito distribui dons como capacitação espiritual para as tarefas; os dons recebidos, uma vez postos em prática para o proveito da igreja, fazem acontecer os ministérios; e então toda a igreja é edificada e cresce em Cristo.

(Da Revista DIDASKAIA – 1º quadrimestre / 2023 – IBODANTAS)

 

terça-feira, 3 de dezembro de 2024

QUANTO A NOÉ E SEU TEMPO

 

Começando pela circunstância da história original.  Os capítulos 1 a 11 do Livro de Gênesis narram o que os especialistas chamam de pré-história bíblica.  Ou seja, ali nós temos a narração de fatos e eventos que irão montar a cena para o chamado de Abraão.

Nesse contexto, Noé é apresentado como um personagem que – com sua fidelidade – tornou-se o elo para a recriação da humanidade (uma espécie de "restart").  Então é mais importante compreender suas lições que se apegar a detalhes.

 

Assim, alguns pontos vão me chamar a atenção:

 

# 120 anos – ou três gerações – não deve ser um número a se contabilizar aritmeticamente.  Na Bíblia os números não representam quantidades a serem somadas, mas indicam conceitos a serem compreendidos.  Assim, aqui entendo que o texto se refere a um tempo bastante longo entre o chamado de Noé e as águas caírem, dando bastante oportunidade para que homens e mulheres se reposicionarem em sua relação com Deus e sua criação. 

Isso deve ser também lição para nós.  Deus continua dando bastante tempo para que cada indivíduo – e para a coletividade – se volte para o projeto original do Criador (Pv 23:26 faz um apelo nesse sentido).

 

# Ainda falando sobre o tempo.  Deus é eterno, e nós históricos.  Então, do ponto de vista de Deus, quanto tempo tenha que passar é irrelevante.  O Senhor sempre está no tempo e no momento certo.  Nós é que precisamos nos ajustar a ele.

Deus continua dando oportunidades para todos os seres humanos.  Não se deve confundir o tempo em que Deus estende a sua misericórdia (o texto de Pedro fala em um Deus longânime) com uma inatividade divina (marque aí Is 55:6-7).

 

# Sobre os que foram salvos pela arca:  também não penso em questão de números: foram salvos todos os que creram na mensagem e entraram na arca.

A verdade bíblica é que não é desejo divino que ninguém se perca.  Vou insistir:  Deus não queria que aquela geração rebelde se afogasse, mas que voltasse para ELE (Ez 18:32 me dá base nessa compreensão).

 

#Importante.  Estamos na época da graça.  O apóstolo sabia disso.  Então o texto está dizendo que, se no tempo de Noé Deus deu chance para arrependimento, quanto mais agora, depois que Cristo morreu por nossos pecados, ELE nos dará muito mais oportunidades para o aceitar.

 

# Quanto à por que não se arrependeram.  A humanidade sempre teve inclinação para a maldade.  Infelizmente isso é primazia da agora!   O profeta Jeremias responde com a seguinte reflexão: "O coração humano é mais enganoso que qualquer coisa e é extremamente perverso" (Jr 17:9).

 

# Ainda sobre os tempos de Noé.  O próprio Jesus comparou a sua próxima vinda com os dias do dilúvio que pareceu repentino e inesperado para alguns – embora já se estava predizendo a sua chegada a muito tempo.

Isso deve servir de alerta para todo cristão (leia Lc 17:26-27 e Mt 24:37-39).

 

# E lembre-se: A salvação eterna é questão individual e é verdade que Deus enviou seu Filho Unigênito para todo aquele nele crer tenha a vida eterna (citação explícita de Jo 3:16).