terça-feira, 9 de junho de 2015

UM DEUS MATERNAL

Nas antigas tradições de Israel, encontramos uma dupla consciência de que Deus é adorado na singularidade de ser único Deus: por um lado, temos a memória do nome que é dado a Deus como o Deus dos pais (Abraão, Isaque e Jacó), com tudo o que esta palavra pode evocar de grave e afetuoso; e, por outro lado, temos a ideia de que Israel foi adotado como um filho de Deus, que se torna assim o Pai de Israel para adoção (Os 11, Jr 3:19).  Esta ideia paterna de Deus é profundamente positiva e o israelita percebeu essa certeza como um benefício.  Ter por pai da nação o criador de tudo é, sem dúvida, um elemento de confiança, se o meu destino depende dele que é meu Pai.  Então eu posso ter a esperança de redenção.
Ao mesmo tempo, a própria ideia de criação dá ao conceito judaico de Deus uma dimensão maternal inegável.  Nos países vizinhos, ao lado do Deus-Pai havia a sua Ashera, a esposa, porque o macho precisa da fertilidade feminina para criar.  No sentido da criação bíblica, porque só há um Deus, ele deve ser tanto masculino (pai) e feminino (mãe), então podemos concluir que a fé de Israel em Deus consiste na fé como um "pai-maternal" como princípio da criação. 
Agora, vamos ver se essa percepção é corroborada pelos dados bíblicos.  Partimos do texto que nos guia na reflexão (Gn 1:1-2 e 27-29): "Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou".  Este exemplo seria suficiente, mas ao longo da história a dominação masculina (patriarcado) relegou a dimensão feminina de Deus a uma metáfora sem praticamente nenhuma relevância na reflexão teológica.  Somente uma imagem que integra os dois aspectos da imagem divina (masculino e feminino) faz justiça aos dados bíblicos irrefutáveis. 
Deus cria e a criação acontece através da Ruach, espírito e hálito divino que é Neshama, respiração, vento.  A santa Ruach em hebraico é palavra feminina.  A criação é a implantação da Ruach divina que faz eclodir num oceano imenso e escuro o nascimento primordial e sagrado da vida.  A imagem é a de uma pomba que choca seus ovos.  Às vezes, como a carícia da brisa do vento (a Ruach levou Israel como o pastor leva o seu gado no deserto – Is 63:14), ou como um vento forte que separa o mar para que o povo opresso possa escapar do genocídio planejado por Faraó.
Outra imagem que reforça o conceito de pai-materno é o uso de dois tipos de expressões relacionadas com os órgãos reprodutivos femininos, que dão nome ao amor misericordioso e incondicional de Deus.  A primeira palavra é rachamim – palavra que descreve a clemência e a misericórdia de Deus.  A raiz desta palavra é requem que significa "útero", os rachamim então são as partes do corpo feminino, onde a vida cresce, onde a criança cresce, é protegido/a, recebe nutrição e é a primeira "casa" do ser humano – da qual sempre sentiremos falta após o nascimento.  Ao aplicar esta expressão para Deus, rachamim significa que Deus, como a mãe, sente dentro de si o mesmo tipo de amor altruísta e feito de pura graça, é um amor invencível contra a qual nada se pode fazer (Is 49:15 diz: "haverá mãe que possa esquecer seu bebê que ainda mama ... embora ela possa esquecê-lo, eu não me esquecerei do você!").  Ele evoca a intimidade do amor maternal que protege, conserva, perdoa de um modo tão misterioso e contínuo. 
A hesed divina é, portanto, o coração divino, desde o ventre de sua mãe, e apesar das infidelidades e pecados, renova o pacto, perdoa o pecado e dá ao pecador arrependido continuamente uma nova oportunidade para começar de novo o caminho de santificação.  A fé de Israel se volta para Deus, portanto, com esta profunda consciência de ser ele um pai com implicações maternas.  O Sl 77:9  numa tradução literal questiona se a ira de Deus encerrou a sua rachamim? Isto não é possível para Deus pois não pode "esquecer" sua hesed, sua compaixão misericordiosa.
Temos ainda a dimensão materna também na idéia de Sabedoria bíblica, hokma que às vezes é chamado de "filha de Deus".  O filho de Deus tem, portanto, características femininas, e não apenas masculinas, uma vez que Cristo é chamado "poder" (dynamis) e "sabedoria" (sophia-hokma) de Deus.  No capítulo 8 de Provérbios a Sabedoria é uma mãe que infunde e transmite a sabedoria da vida a seus filhos e filhas para que eles possam aprender os mandamentos por meio do temor a Deus, para ocupar o seu próprio lugar de colaboradores de Deus no cuidado da criação e dos outros e não para a sua destruição ou dominação perversa.  
Finalmente, encontramos no Novo Testamento a palavra que define Deus no feminino:  agape.  O pai de Jesus é agape, amor e isto está em perfeita continuidade com o que vimos no Antigo Testamento: é o amor agape de Deus, o pai-materno, que se derrama sobre o mundo (o primeiro filho) e dá a si mesmo, o Filho, o amado, para salvar e redimir um mundo que de outra forma estaria perdido.  Essa idéia de Deus "derramar" seu próprio Filho sobre o mundo pecaminoso e perdido  é então acompanhada pelo dom do Espírito, quando o Filho retorna ao pai-materno.  Deus continua a derramar o seu ser amor pelo carisma total Pneuma (palavra que traduz o hebraico Ruach no grego: Espírito).  Deus mesmo está se derramando sobre o mundo, sobre as relações humanas desfiguradas pelo pecado, para criar novas relações de filiação e dependência paterna e materna.
Deus não esconde dentro de si infernos ou paraísos para trazê-los no fim dos tempos, mas dentro de si ele é um Deus pai-materno.  Este é o princípio inclusivo divino que nós agora reconhecemos completamente na obra divina desde o início e que, por séculos, foram ofuscados por teologias inadequadas e que têm obscurecido a realidade da Trindade divina.

Texto escrito por Martin Ibarra.  O original em italiano intitulado: Il nostro Dio è un Dio "maternale" pode ser lido em http://www.chiesabattistadimilano.it

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