Nas antigas tradições de Israel,
encontramos uma dupla consciência de que Deus é adorado na singularidade de ser
único Deus: por um lado, temos a memória do nome que é dado a Deus como o Deus
dos pais (Abraão, Isaque e Jacó), com tudo o que esta palavra pode evocar de
grave e afetuoso; e, por outro lado, temos a ideia de que Israel foi adotado
como um filho de Deus, que se torna assim o Pai de Israel para adoção (Os 11, Jr
3:19). Esta ideia paterna de Deus é
profundamente positiva e o israelita percebeu essa certeza como um benefício. Ter por pai da nação o criador de tudo é, sem
dúvida, um elemento de confiança, se o meu destino depende dele que é meu Pai. Então eu posso ter a esperança de redenção.
Ao mesmo tempo, a própria ideia de
criação dá ao conceito judaico de Deus uma dimensão maternal inegável. Nos países vizinhos, ao lado do Deus-Pai havia
a sua Ashera, a esposa, porque o
macho precisa da fertilidade feminina para criar. No sentido da criação bíblica, porque só há
um Deus, ele deve ser tanto masculino (pai) e feminino (mãe), então podemos
concluir que a fé de Israel em Deus consiste na fé como um "pai-maternal"
como princípio da criação.
Agora, vamos ver se essa percepção
é corroborada pelos dados bíblicos. Partimos
do texto que nos guia na reflexão (Gn 1:1-2 e 27-29): "Criou Deus o homem
à sua imagem, à imagem de Deus o criou, homem e mulher os criou". Este exemplo seria suficiente, mas ao longo
da história a dominação masculina (patriarcado) relegou a dimensão feminina de
Deus a uma metáfora sem praticamente nenhuma relevância na reflexão teológica. Somente uma imagem que integra os dois
aspectos da imagem divina (masculino e feminino) faz justiça aos dados bíblicos
irrefutáveis.
Deus cria e a criação acontece
através da Ruach, espírito e hálito divino
que é Neshama, respiração, vento. A santa Ruach
em hebraico é palavra feminina. A
criação é a implantação da Ruach divina
que faz eclodir num oceano imenso e escuro o nascimento primordial e sagrado da
vida. A imagem é a de uma pomba que
choca seus ovos. Às vezes, como a
carícia da brisa do vento (a Ruach levou
Israel como o pastor leva o seu gado no deserto – Is 63:14), ou como um vento
forte que separa o mar para que o povo opresso possa escapar do genocídio
planejado por Faraó.
Outra imagem que reforça o
conceito de pai-materno é o uso de dois tipos de expressões relacionadas com os
órgãos reprodutivos femininos, que dão nome ao amor misericordioso e
incondicional de Deus. A primeira
palavra é rachamim – palavra que descreve
a clemência e a misericórdia de Deus. A
raiz desta palavra é requem que
significa "útero", os rachamim
então são as partes do corpo feminino, onde a vida cresce, onde a criança
cresce, é protegido/a, recebe nutrição e é a primeira "casa" do ser humano
– da qual sempre sentiremos falta após o nascimento. Ao aplicar esta expressão para Deus, rachamim significa que Deus, como a mãe,
sente dentro de si o mesmo tipo de amor altruísta e feito de pura graça, é um
amor invencível contra a qual nada se pode fazer (Is 49:15 diz: "haverá
mãe que possa esquecer seu bebê que ainda mama ... embora ela possa esquecê-lo,
eu não me esquecerei do você!").
Ele evoca a intimidade do amor maternal que protege, conserva, perdoa de
um modo tão misterioso e contínuo.
A hesed divina é, portanto, o coração divino, desde o ventre de sua
mãe, e apesar das infidelidades e pecados, renova o pacto, perdoa o pecado e dá
ao pecador arrependido continuamente uma nova oportunidade para começar de novo
o caminho de santificação. A fé de
Israel se volta para Deus, portanto, com esta profunda consciência de ser ele
um pai com implicações maternas. O Sl 77:9
numa tradução literal questiona se a ira
de Deus encerrou a sua rachamim? Isto
não é possível para Deus pois não pode "esquecer" sua hesed, sua compaixão misericordiosa.
Temos ainda a dimensão materna
também na idéia de Sabedoria bíblica, hokma
que às vezes é chamado de "filha de Deus". O filho de Deus tem, portanto,
características femininas, e não apenas masculinas, uma vez que Cristo é
chamado "poder" (dynamis) e
"sabedoria" (sophia-hokma) de Deus. No capítulo 8 de Provérbios a Sabedoria é uma
mãe que infunde e transmite a sabedoria da vida a seus filhos e filhas para que
eles possam aprender os mandamentos por meio do temor a Deus, para ocupar o seu
próprio lugar de colaboradores de Deus no cuidado da criação e dos outros e não
para a sua destruição ou dominação perversa.
Finalmente, encontramos no Novo
Testamento a palavra que define Deus no feminino: agape. O pai de Jesus é agape, amor e isto está em perfeita continuidade com o que vimos no
Antigo Testamento: é o amor agape de
Deus, o pai-materno, que se derrama sobre o mundo (o primeiro filho) e dá a si
mesmo, o Filho, o amado, para salvar e redimir um mundo que de outra forma estaria
perdido. Essa idéia de Deus "derramar"
seu próprio Filho sobre o mundo pecaminoso e perdido é então acompanhada pelo dom do Espírito, quando
o Filho retorna ao pai-materno. Deus
continua a derramar o seu ser amor pelo carisma
total Pneuma (palavra que traduz o
hebraico Ruach no grego: Espírito). Deus mesmo está se derramando sobre o mundo,
sobre as relações humanas desfiguradas pelo pecado, para criar novas relações
de filiação e dependência paterna e materna.
Deus não esconde dentro de si
infernos ou paraísos para trazê-los no fim dos tempos, mas dentro de si ele é
um Deus pai-materno. Este é o princípio
inclusivo divino que nós agora reconhecemos completamente na obra divina desde
o início e que, por séculos, foram ofuscados por teologias inadequadas e que
têm obscurecido a realidade da Trindade divina.
Texto escrito por Martin Ibarra. O original em italiano intitulado: Il
nostro Dio è un Dio "maternale"
pode ser lido em http://www.chiesabattistadimilano.it
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