sexta-feira, 28 de agosto de 2020

DIANTE DO COSMO


 

Os céus conversam sobre a glória de Deus
e o cosmo reverbera a arte de suas mãos.
Sl 19:1

 

Os eruditos da Teologia costumam amparar a assertiva da revelação geral ou natural na citação bíblica de textos como os primeiros versos do Salmo 19.  Se céus e firmamento me apresentam a divindade, então é possível que, mesmo palidamente, seus ditames estejam acessíveis à humanidade (Rm 1:18-21 corrobora essa teologia).

Deveria começar a refletir sobre o Sl 19 a partir desse pressuposto, uma vez que as bases de omnes cogitationes meas são teológicas.  Mas vou abandoná-lo em busca de outras trilhas.

Um tema que me atrai é ler sobre as fronteiras do conhecimento: ali onde a ciência dialoga com a criatividade, o real com o possível, e os limites entre o método rigoroso e a devaneio puro se entrecruzam de maneira fértil.

Nesse sentido, devo citar "O Universo numa Casca de Noz" (The Universe in a Nutshell, título original – de Stephen Hawking) que li com acurada curiosidade – mesmo precisando constatar que cheguei ao final sem total compreensão!

Também vou confessar que me acrescenta muito assistir documentários como Cosmos (e outros similares) dirigidos por cientistas como Carl Sagan e Neil deGrasse Tyson.  Não que assimile ou concorde com absolutamente tudo!

Eu vou então partir dessa trilha – talvez apenas seguindo migalhas de pão deixadas ao longo do caminho para que eu possa encontrar a rota de volta.

Dizem os especialistas que o nosso universo tem algo em torno de 13,5 bilhões de anos (isso vale para tempo e espaço) e que nós, humanos hoje, nada mais somos que poeira de estrelas.  Há algo de poético nessa afirmação-constatação.

Só que olhar para esses dados sem filtro algum não nos vai permitir captar significados por essas linhas onde conhecimento e imaginação nos conduzem.  Então entendo que devo mirar com os óculos certos.  E os meus são teológicos.

Há aí um universo absolutamente imenso, entranhadamente complexo, surpreendentemente fascinante.  Um universo cujas leis e forças se espalham e espelham dos mais gigantescos astros às mais ínfimas partículas.

E nesse universo eu contemplo e percebo um Deus transcendente, criador e eterno. "Antes que houvesse dia, eu sou" (Is  43:13).

Não dá para mapeá-lo nas cartas celestes, nem captá-lo com rádios-telescópio e nem é possível inferi-lo de dados astronômicos.  Mas esse cosmo reverbera a arte divina daquele que o Karl Bart chama de totaliter aliter – o totalmente outro.

Olhando ainda a partir do Cosmo há outra perspectiva.

Em fevereiro de 1990 a nave Voyager I estava orbitando Saturno quando o astrônomo Carl Sagan sugeriu que suas lentes se voltassem em nossa direção e fotografasse.  O resultado foi a imagem da terra registrada a seis bilhões de quilômetros.  Vista assim, nós somos apenas um "Pálido Ponto Azul".

Abrindo um parêntese.  A imagem citada é chamada em inglês de Pale Blue Dot e está reproduzida lá em cima (crédito: nasa.gov).  O texto em que Carl Sagan comenta a imagem é fantástico – recomendo a leitura.  Fechando o parêntese.

Agora olhando a Pale Blue Dot com os meus óculos teológicos me vejo fascinado pelo universo.  E ecoam em mim as mesmas palavras de Davi: "Enquanto me encanto com o firmamento, eu me questiono: que há em mim para que te importes?" (Sl 8).

Num universo grandioso e majestoso, um Deus que o transcende desce para dar atenção personalizada aos seus. "Anda que seja excelso, ele atenta para o humilde" (Sl 138:6).

Que sentido isso faz?  Como pode ser isso?  Por que o além do Cosmo assume uma personalidade e busca intimidade?  Que há no transcendente que o faça imanente?  Por que se importar com o Pale Blue Dot?

E eu então só encontro uma resposta.  De uma inexplicável forma e sem qualquer lógica cartesiana o Deus da infinidade do Cosmo decidiu simplesmente me amar. "Eu com amor eterno te amei" (Jr 31:4).

E só resta concluir o salmo:

 

Que as ciências que saem da minha boca
e a imaginação que fecunda o meu coração
possam lhe ser agradáveis, ó Senhor.
Sl 19:14

 

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

VALHA-ME, SENHOR

 

Jesus tinha se ocupado todo o dia em atividades ministeriais.  Com a chegada da noite, sentiu que precisava recarregar as baterias, então, tendo despedido a multidão, subiu sozinho ao monte para orar. 

Os discípulos, por sua vez, seguiram de barco para a outra margem do lago.

Já indo alta a madrugada, e o vento estando a açoitar, eis que eles vislumbram um vulto caminhando sobre as águas.

Susto e desespero:

— É um fantasma!!!

Jesus tentou acalmar os embarcados mas, do meio do alvoroço, apenas o intempestivo Pedro teve coragem de enfrentar a situação.

 

# Comentário 1 – quando a realidade é absurda e meus olhos não me são confiáveis, resta a aposta naquilo que não se vê.  Sem muito pensar, foi isso que Pedro fez.

 

Indo em direção à voz do Mestre, Pedro saiu do barco em plena tempestade, e assim, ultrapassando o limite entre a exígua segurança do barco e a improvável voz que lhe chamava ele perdeu o foco no chamado e se viu envolvido pelas águas.  Então começou a afundar.

 

# Comentário 2 – uma fé que se dispersa olhando o caos ou vive na busca de comprovações e evidências, nem me faz caminhar sobre as circunstâncias nem me devolve ao barco. E sobre Pedro veio desespero em cima de desespero.

 

— Valha-me, Senhor!!!

Jesus então o alcançou e com sua mão forte o segurou e trazendo de volta ao barco.  E o vento cessou. 

Boquiabertos, os demais discípulos viram todas as intempéries se trasmudarem em favoráveis, mas somente Pedro se sentia acolhido pessoalmente pelo Senhor.

 

# Comentário 3 – a junção de fé e ousadia espiritual nos tira do barco para o meio da tempestade, porém será ali que a verdadeira segurança daquele que tem poder sobre as águas vai nos alcançar.  Pedro experimentou tudo isso.

 

E finalmente, em calmaria, o dia amanheceu enquanto o barco alcançava à outra margem do lago, na praia de Genesaré.

Mas aí já segue outra história...

 

 

terça-feira, 18 de agosto de 2020

TUDO O QUE FOI ESCRITO

 

O apóstolo Paulo escreve a Timóteo afirmando a sua convicção de que tudo o que foi escrito e que foi por Deus inspirado tem um objetivo especial: tornar o servo de Deus apto para exercer as funções para as quais foi designado.

Esse é um texto bem conhecido e repetidamente citado e recitado.  Em poucas linhas, veja abaixo a tradução que fiz do texto grego e uma rápida análise de algumas palavras que entendi serem as de destaque no texto apostólico:

 

  

Escritoγραφή – se refere àquilo que foi escrito, uma Escritura, um documento escrito – também em Mt 21:42.

Inspirado por Deusθεόπνευστος (adj.) – dos radicais θεός (Deus) +‎ πνέω (soprar) – único uso no NT grego.

Útilὠφέλιμος (adj.) – literalmente benéfico, proveitoso – Paulo também usa o termo em Tt 3:8.

Instruçãoδιδασκαλία – um ensino, uma doutrina, uma formação básica – também em Ef 4:14.

Convicçãoἔλεγχος – a prova, a evidência – é a palavra usada em Hb 11:1 para descrever a fé.

Correçãoἐπανόρθωσις – dos radicais gregos ἐπί +  ἀν + ὀρθόω – daí, restauração, configuração – só aparece aqui no NT grego.

Disciplinaπαιδεία – a educação, a instrução (especialmente de crianças) – aparece também em Hb 12:5.

Justiçaδικαιοσύνη – termo de cunho jurídico que indica a justiça, o correto, o direito exercido – em Rm 1:17 se refere à justiça de Deus.

Perfeitoἄρτιος – indica algo adequado, completo – esse termo só se encontra aqui em todo o NT grego.

Obraἐξαρτίζω – verbo que descreve a ação de completar o serviço, a obrigação, a tarefa – também em At 21:5.

sexta-feira, 14 de agosto de 2020

AMOR E PERDÃO

 

 

No contexto do episódio da mulher pecadora que ungiu os pés de Jesus durante um jantar na casa do fariseu Simão (a partir de Lc 7:36), Lucas nos apresenta uma lição ensinada por Cristo sobre as relações no Reino de Deus e o comportamento dos seus discípulos.

E começa a lição a partir da narração da história.  Em resposta ao questionamento do anfitrião sobre a identidade de Jesus e a situação da mulher pecadora (veja Lc 7:41), Jesus ensinou que a relação entre amor e perdão no âmbito do evangelho anunciado não deveria nunca estar baseado em padrões sociais ou religiosos, nem serem resultado de merecimento, mas resposta às necessidades.

A lição foi direta: a quem muito se ama, muito se perdoa.  Em outras palavras, o perdão a ser oferecido para aqueles que por conta da vida – e até dos próprios erros – ficaram à margem da sociedade não deve ser estabelecido por critérios de reconhecimento, mas oferecido pelo amor demonstrado.

Assim deve ser a vida dentro do Reino de Deus segundo o evangelho anunciado por Cristo: uma vida baseada no amor, no perdão e no acolhimento.  Estes são valores para o discipulado.

(Publicado originalmente na Revista "Lucas" – Editora Sabre)