A fé cristã, logo cedo, se expandiu em várias direções; enquanto
apóstolos como Paulo, Pedro e João seguiram rumo ao ocidente estabelecendo
igrejas da Ásia Menor até a Europa romana, outras levas de apóstolos e
discípulos de Cristo seguiram em outros sentidos. Assim, por exemplo, se firmaram comunidades
cristãs tanto no Egito de fala grega em Alexandria como de fala copta. Também comunidades surgiram na Armênia e na
Arábia e outras indo ainda mais além das fronteiras do Império Romano. Cada uma destas comunidades agregou à
incipiente herança cristã comum e às formulações judaicas compartilhadas desde
o início várias outras tradições locais com mais ou menos liberdade e
distanciamento desta herança. Aqui,
contudo, interessa-me o ramo da igreja que se estendeu para o mundo
greco-romano, não somente porque numericamente se tornou majoritário, mas
principalmente porque é dele que nascerá a Igreja no Brasil e dele receberá
suas principais tradições, práticas e manifestações, inclusive de culto.
Ao romper os limites do judaísmo e entrar no helenismo, a igreja cristã
encontrou uma cultura classicamente estruturada e uma religiosidade e mitologia
arraigadas. Entretanto o contato maior
do cristianismo primitivo não foi com a cultura clássica grega, foi com a fé
popular e com as manifestações cultuais mais em voga nas camadas da população
mais carentes e menos letradas – onde a igreja encontrou maior número de
adeptos. Aqui duas manifestações
cultuais se destacaram: o culto a Asclépio e os cultos de mistério gregos.
Principalmente entre estas camadas populares nas comunidades
greco-romanas, uma das divindades de maior popularidade e veneração no primeiro
século era Asclépio, o qual passou a ser conhecido pelos romanos pelo nome de Æsculapius
– Esculápio, e rivalizou com as crenças e celebrações cristãs pela preferência
popular não-judia. Seu templo principal
ficava na cidade de Epidauro, no Peloponeso, mas existiram diversos locais de
culto ligados a ele.
Segundo a Mitologia Grega, Asclépio era filho de Apolo e da ninfa
Coronis, tendo sido educado pelo centauro Quiron de quem aprendeu as artes da
cura e chegou a se tornar um grande médico.
Considerando a situação precária em que viviam as populações carentes ao
longo do mundo greco-romano, a presença de um deus taumaturgo seria sempre alvo
de grande devoção. Quanto ao culto a
Asclépio propriamente dito, chamado pelos gregos de Ασκλέπιος Σωτήρ (Asclepios
Soter – Salvador), os santuários dedicados a ele se tornaram refúgios para
toda espécie de doentes que os procuravam na esperança de que um deus lhes
oferecesse a cura. As práticas ali
desenvolvidas consistiam na prescrição de regimes terapêuticos que teriam sido
ensinados pela divindade e que incluíam prescrição de exercícios e dietas e
rituais de incubação.
Como uma das ênfases da pregação da igreja sobre a divindade de Jesus
atribuía-lhe o poder de curar, então, na visão popular, Jesus e Asclépio seriam
em certo aspecto deuses rivais, consequentemente os seus respectivos cultos
seriam também rivais. Acontece que nas
crenças politeístas, ao contrário da visão do monoteísmo ético pregado em
Israel e recebido pela igreja, a rivalidade entre divindades não significaria
necessariamente que um culto deveria anular o outro e sim que poderiam ser
complementares. Nesta concepção de
sincretismo religioso tão em voga, o cristianismo acabou por ser influenciado
pelo culto a Asclépio.
Em relação ao culto sincretista grego e sua
influência sobre a Igreja Primitiva devo, porém, destacar a carta dirigida a
Igreja de Pérgamo no Apocalipse (Ap 2:12-17).
Naquela cidade da Ásia Menor estava construída uma acrópole dedicada a
vários deuses – entre eles Zeus, Atenas e o próprio Asclépio – além de ter sido
ali estabelecido desde muito cedo o culto ao imperador – reconhecido como o
"Divino Augusto". Sobre este
ambiente George Ladd observa:
Pérgamo também
era o centro do culto a Asclépio, o deus-serpente das curas, e o seu colégio de
sacerdotes-médicos era famoso. Pérgamo, assim
era uma fortaleza das religiões pagãs e do culto ao imperador, um ambiente
extremamente difícil para uma igreja cristã.
Na carta do Apocalipse, embora se elogie a
fidelidade dos cristãos dali, há o reconhecimento de que os cultos praticados
na cidade eram na sua essência anticristãos: "Sei onde você vive – onde
está o trono de Satanás" (Ap 3:13).
Por isso a reprimenda é enfática: "Tenho contra você algumas
coisas: [...] comer alimentos sacrificados a ídolos e praticar a imoralidade
sexual" (Ap 3:14). Considerando que
um dos enfoques principais do Apocalipse é a adoração ao Cordeiro – como já
comentei acima – então qualquer manifestação cultual que incluísse outra
divindade, mesmo que apenas tangencialmente (e aqui em especial devo incluir o
culto popular a Asclépio e o culto oficial ao imperador), deveria ser encarada
pela igreja como influência satânica e para tal atitude dever-se-ia exigir
arrependimento (Ap 3:16). Este
posicionamento neotestamentário então me leva a compreender que, embora nas camadas
mais populares possa ter havido uma tendência ao sincretismo; na sua formação
doutrinária e cultual a igreja desde cedo primou pela exclusividade do culto a
Cristo.
Do livro: DE ADÃO ATÉ HOJE – um estudo de Culto Cristão.
Na imagem lá
em cima, a Acrópole vista a partir do Santuário de Asclépio –
crédito da imagem: Wikipedia.com
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TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
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