sexta-feira, 26 de dezembro de 2014

CADÊ DEUS?

Os Salmos 42 e 43 formam um conjunto que abrem a segunda parte do Saltério.  Eles dão expressão à alma do salmista que lamenta a tristeza, a carência e um sentimento de ausência de Deus – sentimento este que só tende a se alargar diante do questionamento: Onde está teu Deus? (42:3 e 10).
Esta é uma questão aterradora: diante da vida e das circunstâncias, onde está meu Deus?  Onde posso encontrá-lo?  O que aconteceu que não estou percebendo o seu agir em minha vida?  Tal questionamento feito ao salmista, muito bem pode ser aplicado à nossa vida hoje: Cadê Deus?  Veja se isto tem ficado perceptível também em sua vida, como ficou para o autor bíblico: porque não sabia onde está Deus, a alma estava sedenta (42:2); somente as lágrimas nutriam a sua vida (42:3) e a alma estava perturbada (42:5).
E tem mais.  O próprio salmista constata que a sensação de isolamento divino era uma cruel realidade mesmo em meio a uma multidão alegre que festejava (42:4).  Ele sabia que o vazio interior de Deus não pode ser preenchido por celebrações exteriores.  É por isto que o desespero só tende a crescer, é um abismo arrastando outro abismo (42:7).
Como acalentar a alma sofrida se Deus está ausente?  Onde está Deus no meio deste deserto? 
Nos Salmos está a única resposta possível a esta carência inquietante.  Por três vezes o salmista observa: ponha a sua esperança em Deus! (42:5; 11 e 43:5).  Deus está na esperança que é a irmã da fé.  Por conta disto o salmista toma a decisão definitiva: então irei ao altar de Deus (43:4).  Não importam as circunstâncias, Deus só pode ser encontrado no altar.  Quando me colocar neste lugar então encontrarei o Deus que me sacia.
Diante desta pergunta que insiste em voltar: onde está teu Deus?  Volte-se para o altar pois é lá que a esperança divina renasce e o encontramos de braços abertos. 
Que assim se torne a nossa alma para a glória de Deus.

(Publiquei inicialmente esta reflexão em 24/09/2010 com o título 'Onde está teu Deus?' no sítio http://ibsolnascente.blogspot.com.br)

terça-feira, 23 de dezembro de 2014

Tertuliano: A Bíblia e a Filosofia

Gostaria de pensar um pouco sobre a relação entre a Bíblia e a Filosofia em Tertuliano.  Serão considerações rápidas.  Tertuliano teve uma formação acadêmica e filosófica invejável na cidade de Roma e mesmo quando aceitou o cristianismo manteve sua mente filosófica, quer na maneira de argumentar, quer aproveitando as citações da Filosofia.  Tertuliano foi por formação advogado mas em nenhum momento descuidou do mundo filosófico.  Se ele pôde ser um árduo defensor da verdade cristã, ele o foi porque usou todos os recursos que tinha à mão, inclusive da Filosofia da sua época.
Em dois momentos específicos Tertuliano demonstra conhecer profundamente a Filosofia e a cultura latina clássica e contemporânea sua.  Em De Præsc. XXXIX ele cita Virgílio e Ovídio, mas o faz como uma espécie de ponte entre as idéias dos seus adversários e as das Escrituras.  Nesta passagem, para Tertuliano, o que os hereges fizeram foi apenas mutilar as Sagradas Escrituras como o fizeram os remendões poéticos com os autores clássicos.  O outro exemplo é na exortação aos mártires, que Tertuliano faz um paralelo entre os preceitos do Senhor em Mateus e os fatos da história recente e da Filosofia greco-romana.  Aqui o objetivo é claramente fazer sobressair o texto bíblico sobre a própria Filosofia (cf. Ad. Mart. IV : 1).  Em ambos os casos Tertuliano usa a Filosofia somente com o objetivo de fazer provar seu ponto de vista.  Não vendo assim um valor normativo de verdade,  Tertuliano usa a Filosofia somente por ser rica em exemplos que podem ser usados para ilustrar seus argumentos.
Mesmo usando do recurso da Filosofia, Tertuliano não consegue aceitar a hermenêutica filosófica pois ela é a mãe das heresias (De Præsc. VII).  Em todos os seus argumentos contra os hereges este ponto se mantém inalterado para Tertuliano: os hereges apresentam uma leitura diferente do texto bíblico exatamente porque deixaram o caminho da igreja e deram ouvidos aos filósofos, ou seja, ouvir Platão, Epicuro ou Aristóteles implica em não ouvir Jesus e Paulo.  A questão levantada por Tertuliano é a seguinte: que haverá de comum entre Atenas e Jerusalém? entre a Academia e a Igreja? entre os hereges e os cristãos?  Para Tertuliano, Filosofia e cristianismo sempre que se casaram tiveram como resultado a heresia.
Mas Tertuliano não tem como negar que alguns pressupostos filosóficos se alinham com as verdades cristãs.  Por mais que a Filosofia esteja na gênese da heresia, na própria Filosofia encontramos muitos pontos em concordância com os princípios cristãos.  Para Tertuliano, neste caso, mesmo que assim fosse, as divinas Escrituras são muito anteriores aos livros profanos (De Test. Animæ V).  A comparação aqui é especificamente entre os textos do Antigo Testamento e dos gregos clássicos.  O motivo alegado para a superioridade dos primeiros sobre os últimos é simplesmente cronológico.  Se há alguma concordância entre a Bíblia e a Filosofia é porque os gregos copiaram algumas verdades dos judeus e reproduziram-nas na sua Filosofia.  Sendo assim a Filosofia só vem comprovar posteriormente o valor da verdade cristã já provado a princípio pelos judeus.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

A GRANDE CELEBRAÇÃO


Gosto muito de celebrar a Ceia do Senhor com a minha igreja.  Ela é um momento singular na vida, na comunhão, na adoração e nas celebrações da igreja de Cristo.  O coração se enche de solene alegria e nunca faltam motivos para celebrar.
Como elemento memorial, a Ceia atualiza, para a vida dos santos, a certeza de que o castigo que nos trouxe a paz estava sobre ele (leia em Is 53:5).  Juntamente a isto, a Ceia ainda é para os redimidos a certeza de que celebramos a expectativa da vinda do que é perfeito (confira 1Co 13:10).
Nas páginas bíblicas, certamente, é que encontro a descrição da grande celebração que antecipo agora na comunhão dos santos.  Veja como é magnífico Ap 19 onde é narrada a concretização do que já celebramos na Ceia do Senhor – aqui está a força espiritual deste ato.  Venha comigo ao texto:
& Ap 19:6 – Aleluia! Pois reina o Senhor.  A Ceia do Senhor é momento de celebração porque festeja a antecipação da vitória definitiva de Cristo (lembre do brado na cruz citado em Jo 19:30).  É profecia e fato consumado que o Senhor Todo-Poderoso irá reinar para sempre, e na Comunhão da igreja hoje já festejo este Reino eterno.
& Ap 19:7 – Chegou a hora do casamento do Cordeiro.  A igreja é a noiva do Cordeiro e está prometida em casamento com o Filho do Rei dos reis.  Assim celebramos juntos desde agora a alegria de podermos desposar a Cristo, o nosso amado (este momento triunfal está narrado logo depois em Ap 21:2).  Por mais que possa parecer demorar, mas a hora vai chegar – e isto é certo!
& Ap 19:9 – Felizes os convidados para o banquete.  Na sua visão, João ouviu o anjo declarar que são bem-aventurados todos os que são convidados para participarem das bodas eternas.  Hoje eu celebro na Ceia do Senhor a certeza inabalável do convite amoroso de Cristo para entrar no seu gozo perene (confio nas palavras de Mt 25:34).
Neste tempo presente, celebro junto com a igreja a Ceia do Senhor, a comunhão com os santos, a antecipação da glória.  Ali como e bebo a antecipação do Reino, do casamento e do convite eterno de amor de Cristo.  É um momento de festa e comemoração e de deixar o coração ser reverentemente tocado.  É ocasião ímpar da adoração da igreja.
Celebremos assim o estabelecimento do Reino de Deus; a chegada do momento final de vitória; e a alegria de estarmos participando Ceia.  Para a glória do Cordeiro e daquele que está assentado sobre o trono.  Aleluia!

(Texto publicado originalmente no sítio http://ibsolnascente.blogspot.com.br em 17/12/2010)



Leia também o livro TUÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse.  Texto comovente, onde eu coloco meu coração e vida à serviço do Reino de Deus. Você vai se apaixonar por este belíssimo texto, onde a fidelidade a Palavra de Deus é uma marca registrada.

 

Disponível na:

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Tertuliano e a autoridade das Escrituras

Tertuliano sempre faz afirmações categóricas.  Seus postulados sempre são colocados de maneira tão convicta que nem sequer abre espaço para questionamento por parte de seus opositores.  Se naturalmente seu espírito já se mostra de estar em busca da verdade, sua formação acadêmica em advocacia lhe forneceu as armas para defendê-la de maneira a todas as vezes a sua visão da verdade mostrar-se como a única autorizada e absolutamente certa.  Mas suas afirmações não são feitas no vazio.  Tertuliano convoca sempre para si o peso das Escrituras Sagradas como aval das suas verdades.  Faz-se necessário também lembrar que eventualmente ele cita diversos autores como os da Filosofia greco-romana, mas nitidamente estas já não têm o mesmo valor das retiradas do texto bíblico.
Nosso pai latino não coloca em cheque em momento algum a autoridade dos textos sagrados que usa e nem sequer dá espaço para o levantamento da questão.  Para Tertuliano o texto bíblico deve ser tomado como normativo pela igreja por conta de ser obra da bondade de Deus (Adv. Marc. 2:4).  Mas a força da Escritura vai além: a Bíblia não é só uma dádiva divina, é principalmente a palavra de Deus.  Na sua Apologia, Tertuliano defende os cristãos frente ao império romano colocando o texto sacro nas mãos dos seus oponentes: Examinai a Palavra de Deus, nossas Escrituras (Apol. XXXI).  Logicamente não vamos pensar que Tertuliano fosse esperar que os magistrados do império romano lessem a Bíblia com os mesmos olhos dos cristãos, mas ele sabe que sendo as Escrituras um preceito que imperiosamente manda nos cristãos então estes só podem ser julgados levando-a em consideração.  Em resumo Tertuliano concorda com Paulo quando diz que toda a Escritura própria para edificar é inspirada por Deus (Fem. I 3:3 e 1Tm 3:16).
Cronologicamente Tertuliano pode ser considerado com o meio do caminho entre os apóstolos e o Concílio de Nicéia (ano de 325), mas ele já pensa como se estivesse às vésperas do Concílio.  Em Tertuliano pouco mais de um século se tem passado desde que apareceram os escritos dos apóstolos e estes já circulavam livremente nas diversas comunidades cristãs.  O Antigo Testamento também já estava devidamente incorporado ao uso da igreja – apesar da implicância de Marcião.  Eusébio de Cesareia informa que alguns textos eram lidos inclusive como parte da liturgia cristã.  Tertuliano usa então os textos que já eram conhecidos e usados pelos cristãos, mas já não questiona sua autoridade, como aos poucos começam a fazer seus contemporâneos cristãos.  Em outras palavras, muito da postura dogmática de Tertuliano com relação ao texto sagrado foi sinal de que esta postura já começava a ganhar corpo no seio da igreja cristã no segundo e terceiro século de sua história e de que Tertuliano foi um dos principais influenciadores.
Mas Tertuliano enfrenta um problema que ainda é problema para nós cristãos hoje: pontos de vista diferente e interpretações várias cabem à Bíblia.  Sendo assim, qual seria a leitura autorizada?  A posição de Tertuliano é clara em relação a este problema, ele afirma que tão longe estão os homens de acreditarem na nossas Escrituras, das quais ninguém se aproxima senão quem já é cristão (De Test. Animæ I).  Mesmo essa assertiva ainda podia indicar uma multiplicidade de interpretações, pois no próprio meio do cristianismo há diferentes leituras do texto bíblico.  Para Tertuliano aqui também não existe problema.  Don Auletta na sua introdução ao texto sobre a Prescrição contra os Hereges soube interpretar bem este ponto de vista de Tertuliano: “só a igreja é legítima depositária e proprietária das Sagradas Escrituras, porque só ela pode demonstrar, possuir estes tesouros, por meio da tradição apostólica”.  Nas palavras do próprio Tertuliano:

É evidente então a força da nossa tese, de que os hereges se não deve admitir a discutir as Escrituras, pois nós, sem recorrer a ela, podemos provar que eles nenhum direito têm à Escritura.  Com efeito, se são hereges não são cristãos, pelo fato de não terem recebido de Cristo aquilo que por própria iniciativa admitiram na qualidade de hereges.  Se não são cristãos não podem invocar nenhum direito à literatura cristã. (De Præsc. XXXVII).


sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

MAIS PERTO QUERO ESTAR

Um dos hinos mais tradicionais que cantamos diz Mais Perto Quero Estar Meu Deus de Ti.  Poucos adjetivos podem descrevê-lo com exatidão – talvez apenas belo, profundo e tocante.  É uma oração.
Reza a lenda que durante o naufrágio do Titanic seus acordes foram tocados pelo conjunto que acompanhava a embarcação.  Como lenda, tem sua função pedagógica.  Mas, alheio a isto, esta canção tem história.
O texto original (em inglês: Nearer My God to Thee) foi escrito em 1822 pela inglesa Sarah Flower Adams – a primeira mulher a ser reconhecida como compositora evangélica – e musicada inicialmente por sua irmã Eliza.  Porém a letra só veio a ganhar notoriedade em 1856 quando Lowell Mason – conhecido como o pai da música na igreja americana – compôs uma melodia intitulada Bethany e colocou na letra de SF Adams.  E é esta melodia que cantamos até hoje.
De lá para cá, o hino fez parte de sucessivas coleções e gravações e, por tradição da América, é entoado em velórios e datas solenes.  No Brasil, foi incluído em diversos hinários também tradicionais (com pequenas variações de versão): está no Cantor Cristão – nº 283; no HCC – nº 399; no Hinário Adventista – nº 427; na Harpa Cristã – nº 187; no Salmos e Hinos – nº 360; e no Melodias de Vitória – nº 119; por exemplo.
A harmonia e linha melódica são em si um convite à prece, mas merece atenção destacada a letra do poema.  Conta-se que Sarah Adams estava meditando na passagem do sonho de Jacó (Gn 28) quando se sentiu inspirada para compor o hino, então escreveu (cito aqui na versão do CC):
Mais perto quero estar, meu Deus de ti,
Inda que seja a dor que me una a ti!
E os versos se seguem:
Andando triste aqui, na solidão,
Paz e descanso a mim, teus braços dão.
 Assim a letra continua extremamente atual como expressão de nossa súplica.  Quando a dor, a tristeza, a solidão ou cansaço tão vividamente presentes em nossa caminhada cotidiana ameaçam fazer sucumbir nossa alma, uma prece constante e verdadeira deve está em nossos lábios e corações: Mais Perto Quero Estar Meu Deus de Ti.  E somente isso trará conforto e esperança.
Então o poema de Sarah Adams termina oferecendo um pouco de luz para os dias sombrios:
There in my Father’s home, safe and at rest,
There in my Savior’s love, perfectly blest;
Age after age to be, nearer my God to Thee.
Em meu português:

Há na casa do meu Pai, segurança e repouso,
Há no amor do meu Salvador, bênção perfeita;
E pelos séculos dos séculos estarei perto de ti meu Deus.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Tertuliano de Cartago

Quintus Septimius Florens Tertullianus, ou simplesmente Tertuliano, nasceu provavelmente no ano 160 em Cartago no norte da África; filho de uma abastada família pagã – o pai era um centurião proconsular romano.  Contrastando com a abundância dos seus escritos (trinta e um ao todo que se conservaram) pouco ou quase nada se sabe sobre sua vida.  Sobre sua juventude ele mesmo confessa que foi pecadora e intelligenti pauca, mas as virtudes cristãs já lhe haviam impressionado.  Recebeu uma formação intelectual invejável em Roma e lá exerceu a profissão de advogado.  E, como muitos intelectuais contemporâneos seus, deveria dominar fluentemente o grego e o latim.
Por volta de 195 converteu-se ao cristianismo.  Deixou então Roma e voltou para Cartago de onde não mudaria mais de residência.  Jerônimo o considerou como sacerdote, mas esta é a única referência que temos do fato, pois até o próprio Tertuliano se refere a si mesmo como leigo, logo não podemos ter certeza alguma quanto a sua ordenação clerical.  Mas o rigor cristão não foi suficiente para saciar sua alma, então aderiu ao montanismo em 207.  Não se sabe exatamente como foi seu contato com Montano e J.L. Gonzalez chega afirmar que é impossível dizer por que Tertuliano se fez montanista.  Mas a verdade é que deste período que provêm os mais apaixonados dos seus escritos, quando ele desce a minúcias e detalhes na defesa de seus pontos de vista.  Mais tarde rompeu com o montanismo e fundou sua própria seita – os tertulianistas – e mais ou menos em 220 encontramos seus últimos escritos o que leva-nos a crer que teria falecido em Cartago pouco depois deste ano, ou nele mesmo.
Seu primeiro escrito – Ad Nationes – apareceu por volta do ano 197 e pode ser considerado como um esboço do que viria a ser o seu Apologeticum, que foi escrito provavelmente no final do mesmo ano ou mais propriamente no ano seguinte.  Sem dúvida alguma o Apologeticum é a obra prima de Tertuliano e nela ele se revela por inteiro.  O texto foi originalmente dirigido aos magistrado romanos – o senado – mas foi rapidamente traduzido para o grego.  Eusébio de Cesaréia fez freqüentes alusões a ele na sua História Eclesiástica.  Em resumo as suas obras podem ser divididas em três grupos: a) os escritos apologéticos, nos quais fez a defesa do cristianismo; b) os dogmáticos, nos quais refuta as heresias e c) os práticos-ascéticos, nos quais versa sobre a moral cristã.
Com toda certeza Tertuliano foi o mais fecundo e rico dos pais latinos da igreja.  Ele foi mestre em língua mas não se limitou às possibilidades que a língua lhe oferecia.  Como ele supercarregou seus escritos da emoção e do arrebatamento espiritual que freqüentemente sentia, ele abandonou o acento romano e utilizou o sotaque africano do latim criando palavras novas quando julgava necessário, desprezando a sintaxe quando esta não lhe era conveniente e utilizando-se constantemente de todos os seus recursos: ora a retórica ou a sofística clássica, ora a chicana e a casuística populares.  A. Harmann assim se refere ao Tertuliano escritor: “Este artífice do verbo triturou, renovou, adaptou, enriqueceu a língua latina.  Forjou um vocabulário para exprimir as verdades da fé.  (...) Ele é o desespero dos tradutores”.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

POSSO E MEREÇO


Ainda ontem, em uma avenida aqui em Aracaju, na minha frente estava um carro com placa de São Paulo parado no sinal (como era de lá, vai como se fosse paulista: "parado no farol") e pude ler o que o cidadão escreveu no vidro (a foto que tirei na hora com o celular não ficou muito boa, mas está aí):
Faço o que posso.
Deus me dá o que mereço.
Não sei se fez aquilo por idiotice, desinformação ou ele acredita mesmo naquela frase.  A verdade é que, confrontando tal ideia com o que diz a Bíblia, a coisa fica séria.
Quanto a primeira afirmação: Faço o que posso, não há muito drama, embora deva-se manter um sinal de alerta sempre ligado.  Fazer o que se pode não é o problema.  Veja dois exemplos bíblicos:
O texto diz que Cornélio era um homem piedoso e religioso.  Ele fez o que pôde.  Então Deus providenciou completar o que lhe faltava e mandou o apóstolo Pedro ao seu encontro como resposta às suas orações (a história está narrada em At 10).   Neste caso, suas intenções e ações foram válidas, embora não suficientes.
Um  outro caso: o jovem rico que procurou Jesus querendo saber como alcançar a vida eterna, também tinha feito o que podia ao longo de sua vida.  Ele era cumpridor da lei desde a infância.  Mas, no caso dele, Jesus entendeu que não bastava.  Era preciso abandonar as riquezas e o apelo delas para poder seguir e alcançar a vida (a história está narrada nos três evangelhos sinóticos – Mt 19:16-24 / Mc 10:17-31 / Lc 18:18-30).
Ou seja, embora seja interessante – e até necessário – fazer o possível para valorizar o Reino de Deus, se for só isso, está muito longe de ser significativo quando o assunto é a vida que Cristo nos oferece (considere ainda Jo 10:10).
Então vem a segunda frase: Deus me dá o que mereço.  E aqui está todo o problema!  Aplicando um simples raciocínio lógico à palavras bíblicas chego a conclusão que, como ser humano pecador sou (Rm 3:23), o que eu realmente mereço é a condenação e a morte (Ez 18:3 e Rm 6:23).  Neste caso é melhor Deus não me dá o que de fato eu mereço.
E graças a Deus ele não me dá nada do que mereço.  O mesmo texto aos Romanos (6:23), aliado a outros tantos que me falam da graça que advém do amor e do sacrifício de Cristo (por exemplo Ef 2:8-10 e 1Pe 1:3-9), garante que a dádiva que recebo de Deus não é resultado de merecimento algum (ainda bem!) mas da única e exclusiva graça dele (considere também Tg 1:16-18).  E assim eu vou continuar crendo, pois minha vida depende disso.
Quanto ao que o cidadão escreveu, volto a dizer: não sei se fez aquilo por idiotice, desinformação ou ele acredita mesmo naquela frase.  O que eu sei é que bem melhor será ele abandonar esta insanidade de merecimento e voltar-se humilde e confiante para a graça de Cristo, pois ela nos basta.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Hermenêutica e epistemologia

Em seu julgamento de Jesus, Pilatos lhe perguntou: Quid est veritas? (Que é a verdade?)  Pergunta esta que mereceu um silêncio por parte de Jesus.  Naquele contexto uma definição de verdade talvez escapasse a objetivos filosóficos ou teológicos.  Ou talvez o quarto evangelista desejasse remontar às palavras do próprio Jesus pouco antes, quando disse: eu sou ... a verdade (Jo 14:6).  Mas o fato nos chama a atenção: um conceito de verdade pode ter muitos vieses, e cada um deles com suas implicações e desdobramentos, cabendo a um hermeneuta a escolha.
Considerando a Hermenêutica como a atividade humana que busca interpretar a realidade e assim fornecer subsídios para que este ser humano possa se achegar à verdade e dela usufruir a consistência; então dependendo de como for minha Hermenêutica, assim poderei vislumbrar a verdade.  Nesta relação há uma sujeito analista/intérprete e um objeto/interpretado e dependendo de quais critérios sejam estabelecidos, a interpretação caminhará em um ou outro sentido e, logicamente, a verdade que daí brotará, trará as feições destes critérios.  Se compreendo a Hermenêutica como uma atividade objetiva, terei uma verdade objetiva.  Se por outro lado, a Hermenêutica configura-se como subjetiva, a verdade ser-me-á subjetiva.
O trabalho objetivo de buscar e interpretar a realidade e estabelecer a verdade conduzirá a se fazer ciência.  Cujo critério de validação é exatamente a possibilidade de o objeto ser captado objetivamente, sem qualquer interferência do sujeito que busca conhecê-lo.  A verdade está aí, disposta no mundo, como o estão os objetos dados a serem investigados, cabe apenas ao investigador ser capaz de fazer as perguntas certas e ouvir os dados que lhes são apresentados.  Neste caso a verdade conhecida independe de quem a conhece, é sempre imutável e, mesmo que possa ser questionada por diferentes pesquisadores, sempre apresentar-se-á como uma verdade dada.
Por outro lado, como se propõe a fazer a Hermenêutica de cunho religioso, o método a ser adotado será o de uma investigação subjetiva, onde o sujeito interpretador influenciará na pesquisa, já que suas premissas pessoais acabam sendo projetadas para o objeto de pesquisa e, consequentemente, para a verdade que dela emanará.  A verdade não está no objeto e por isto não cabe simplesmente procurar lá. A verdade está essencialmente no ser humano que projeta seus valores e anseios para a realidade, procurando dar-lhe significado, mesmo que isto implique numa negação da realidade objetiva e uma projeção de desejos que serão divinamente revelados e mediados.
Pensando nos termos de L. Feuerbach: “A verdade é um sonho do espírito humano”.  E este sonho continuará a instigar o ser humano a conhecer-lhe sua verdadeira face.  Ou como ciência, ou como religião a verdade acompanhará o ser humano apontando-lhe possibilidades e revelando-lhe a realidade.