terça-feira, 17 de junho de 2025

ELIAS E O CORVO

 


 

“Os corvos lhe traziam pão e carne de manhã e à tarde, e ele bebia água do riacho”
(1Rs 17:6 – NVT)

 

Teria o profeta Elias sido alimentado por Árabes e não por corvos na passagem de 1Rs 17:6?

A palavra em Hebraico deveria ser traduzida nesse texto como uma referência às tribos árabes que viviam por ali?

Faz sentido?

 

Numa resposta rápida: embora interessante essa sugestão, mas me parece forçar um pouco a compreensão. 

 

Entendendo.  Esse tipo de exegese, que tenta trazer uma abordagem historicista (com contornos linguísticos), algumas vezes pode enriquecer o entendimento.  Mas também – se não tomar cuidado – pode alcançar atalhos sem nexos. 

Além de que, sempre desconfio de quem se propõe a ser o portador de uma descoberta e um conhecimento único, genial e revolucionário – diferente do consenso histórico.

Quanto a passagem do livro dos Reis: a primeira citação dessa proposta de tradução/interpretação apareceu com Albert Barnes no século XIX que sugeriu serem “mercadores” os que sustentaram o profeta Elias.

 

Indo ao hebraico:

Assim está grafado o hebraico de 1Rs 17:6 na versão da Westminster Leningrad Codex:

וְהָעֹרְבִ֗ים מְבִיאִ֨ים לֹ֜ו לֶ֤חֶם וּבָשָׂר֙

E os corvos trouxeram para ele pão e carne...

 

→ A palavra em questão é ערב (aqui no plural – ערבים) que é traduzida como "corvos".

→ A palavra para "árabe" em hebraico é ערבי (que tem um plural com as mesmas consoantes: ערבים – como em 2Cr 17:11).

 

Assim, a princípio, estando no plural, caberia ao tradutor escolher a versão que melhor se encaixa no contexto!  Só que não!

 

Explorando mais a linguística. 

→ Os gregos da LXX traduziram essa passagem como: και οι κορακες εφερον αυτω...  (literalmente: e os corvos alimentaram ele...).

→ Os massoretas (que vocalizaram as consoantes do hebraico bíblico no sec. VI) pontuaram a palavra para corvo como עֹרֵב ('oreb) e para árabe עֲרָבִי ('arabiy) – permanecendo a distinção no plural.  Então, a menos que os sábios judeus massoretas estejam errados, os corvos não são árabes. 

→ Na versão desse verso em árabe nós lemos: وكانت الغربان تاتي اليه بخبز ولحم (a tradução pelo Google Translate oferece: “E os corvos lhe traziam pão e carne”).

 

E ainda resta a comparação com outras citações:

→ Em Pv 30:17 a advertência para os que zombam dos pais é que seus olhos seriam arrancados por corvos dos ribeiros (ערבי־נחל) e comidos por filhotes de águia (ambas aves de rapina).

→ Na relação dos adversários de Neemias estava um grupo de árabes (ערבים – em Ne 4:7), e não corvos.

 

Citando o episódio:

O profeta Elias, depois de enfrentar o Rei Acabe, foi encaminhado pelo próprio Altíssimo a se esconder nas bandas do Ribeiro de Querite, onde seria sustentado por corvos, que obedeceriam ao ordenamento divino.

Ali, enquanto o riacho vertia água, o profeta recebeu seu mantimento de forma miraculosa. 

Acabando a fonte de água, o Altíssimo instruiu o profeta a ir a Serepta onde daria continuidade a seu ministério.

 

Meus comentários:

Eu posso acreditar que o Deus de Elias usaria qualquer um para sustentar seu servo – inclusive mercadores árabes – e isso não seria incoerente.  Ele é soberano e faz o que quer, da forma que lhe apraz.

Mas eu devo olhar para a situação a partir do próprio profeta.  Elias, apesar de homem como nós (nas palavras de Tiago em Tg 5:17), notabilizou sua profecia por discursos e gestos radicais e extraordinários.

Elias desafiou o Rei Acabe.  Fez render o azeite da viúva e ressuscitou seu filho.  Desafiou os profetas de Baal fazendo chover fogo.  Rechaçou cinquenta soldados de Acazias novamente com fogo descido do céu.  E, finalmente, foi arrebatado num redemoinho de vento não experimentando a morte.

Realmente um homem ser alimentado por um corvo é algo bastante extraordinário – e pior ainda tendo em vista os rituais de pureza.  Mas com Elias era assim.  Ele viveu e transitou com um Deus que faz o miraculoso, o absurdo, o inesperado acontecer, pois é soberano e surpreendente.

Não faz nenhum sentido o profeta ter sido alimentado por corvos – e talvez fizesse mais sentido árabes lhe trazer pão e carne.  Mas eu prefiro seguir a leitura que meus irmãos de fé trilharam, crendo num disparate de um corvo trazendo alimento para um homem e num Deus que, por vezes, insiste em mostrar seu favor de maneira imprevisível.

 


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