“Os corvos
lhe traziam pão e carne de manhã e à tarde, e ele bebia água do riacho”
(1Rs
17:6 – NVT)
Teria
o profeta Elias sido alimentado por Árabes e não por corvos na passagem de 1Rs 17:6?
A
palavra em Hebraico deveria ser traduzida nesse texto como uma referência às
tribos árabes que viviam por ali?
Faz
sentido?
Numa resposta
rápida: embora interessante essa sugestão, mas me parece forçar um pouco a
compreensão.
Entendendo. Esse tipo de exegese, que tenta trazer uma abordagem
historicista (com contornos linguísticos), algumas vezes pode enriquecer o
entendimento. Mas também – se não tomar
cuidado – pode alcançar atalhos sem nexos.
Além de que,
sempre desconfio de quem se propõe a ser o portador de uma descoberta e um
conhecimento único, genial e revolucionário – diferente do consenso histórico.
Quanto a passagem
do livro dos Reis: a primeira citação dessa proposta de tradução/interpretação
apareceu com Albert Barnes no século XIX que sugeriu serem “mercadores” os que
sustentaram o profeta Elias.
Indo ao hebraico:
Assim está
grafado o hebraico de 1Rs 17:6 na versão da Westminster Leningrad Codex:
וְהָעֹרְבִ֗ים
מְבִיאִ֨ים לֹ֜ו לֶ֤חֶם וּבָשָׂר֙
E os corvos trouxeram
para ele pão e carne...
→ A palavra em
questão é ערב (aqui no plural –
ערבים) que é
traduzida como "corvos".
→ A palavra para
"árabe" em hebraico é ערבי
(que tem um plural com as mesmas consoantes: ערבים – como em 2Cr 17:11).
Assim, a
princípio, estando no plural, caberia ao tradutor escolher a versão que melhor
se encaixa no contexto! Só que
não!
Explorando mais a
linguística.
→ Os gregos da
LXX traduziram essa passagem como: και οι κορακες εφερον αυτω... (literalmente: e os corvos alimentaram ele...).
→ Os massoretas
(que vocalizaram as consoantes do hebraico bíblico no sec. VI) pontuaram a
palavra para corvo como עֹרֵב ('oreb) e
para árabe עֲרָבִי ('arabiy) – permanecendo a distinção no plural. Então, a menos que os sábios judeus
massoretas estejam errados, os corvos não são árabes.
→ Na versão desse
verso em árabe nós lemos: وكانت الغربان تاتي اليه بخبز ولحم (a tradução pelo Google Translate oferece: “E os corvos lhe
traziam pão e carne”).
E ainda resta a
comparação com outras citações:
→ Em Pv 30:17 a
advertência para os que zombam dos pais é que seus olhos seriam arrancados por
corvos dos ribeiros (ערבי־נחל) e comidos por
filhotes de águia (ambas aves de rapina).
→ Na relação dos
adversários de Neemias estava um grupo de árabes (ערבים – em Ne 4:7), e não
corvos.
Citando o
episódio:
O profeta Elias,
depois de enfrentar o Rei Acabe, foi encaminhado pelo próprio Altíssimo a se
esconder nas bandas do Ribeiro de Querite, onde seria sustentado por corvos,
que obedeceriam ao ordenamento divino.
Ali, enquanto o
riacho vertia água, o profeta recebeu seu mantimento de forma miraculosa.
Acabando a fonte
de água, o Altíssimo instruiu o profeta a ir a Serepta onde daria continuidade
a seu ministério.
Meus comentários:
Eu posso
acreditar que o Deus de Elias usaria qualquer um para sustentar seu servo –
inclusive mercadores árabes – e isso não seria incoerente. Ele é soberano e faz o que quer, da forma que
lhe apraz.
Mas eu devo olhar
para a situação a partir do próprio profeta.
Elias, apesar de homem como nós (nas palavras de Tiago em Tg 5:17),
notabilizou sua profecia por discursos e gestos radicais e extraordinários.
Elias desafiou o
Rei Acabe. Fez render o azeite da viúva
e ressuscitou seu filho. Desafiou os
profetas de Baal fazendo chover fogo. Rechaçou
cinquenta soldados de Acazias novamente com fogo descido do céu. E, finalmente, foi arrebatado num redemoinho
de vento não experimentando a morte.
Realmente um
homem ser alimentado por um corvo é algo bastante extraordinário – e pior ainda
tendo em vista os rituais de pureza. Mas
com Elias era assim. Ele viveu e transitou
com um Deus que faz o miraculoso, o absurdo, o inesperado acontecer, pois é soberano
e surpreendente.
Não faz nenhum sentido
o profeta ter sido alimentado por corvos – e talvez fizesse mais sentido árabes
lhe trazer pão e carne. Mas eu prefiro
seguir a leitura que meus irmãos de fé trilharam, crendo num disparate de um
corvo trazendo alimento para um homem e num Deus que, por vezes, insiste em mostrar
seu favor de maneira imprevisível.