Eu dei uma busca
aqui e não encontrei entre meus escritos nada que já tenha escrito de modo específico
sobre a narrativa dos laços entre Jônatas e Davi. Mas, atendendo seu questionamento, deixe-me
olhar para o tema – principalmente sobre o texto – em buscas de respostas.
Antes, duas
colocações:
→ Sobre relações
afetivas – e homoafetivas – no mundo antigo, para se ter uma visão clara é
preciso fazer um estudo apurado de como elas funcionavam então. Sem dúvida, eram completamente diferentes das
do mundo de hoje. A sugestão é buscar
pesquisas sérias na área de Sociologia histórica comparativa (aqui vou evitar
essa abordagem, embora indique como necessária).
→ Hoje em dia, em
tempos de polaridade de internet, a maioria do que se fala – e posta – sobre o
tema tem pouca, ou quase nenhuma, base bíblica sólida, nem exegética, nem
teológica. E aqui incluo defensores e
detratores. Na maioria das publicações que vejo e leio se usa as citações de
maneira enviesada para justificar essa ou aquela postura já pré-definida. Isso é, no mínimo, desleal ao texto sagrado (aqui
também vou ignorar os likes dos homos e héteros web-debatedores).
Então vamos ler e
tentar entender as palavras bíblicas, porque isso é o que realmente importa –
mas se essa abordagem linguística lhe parecer cansativa, passe logo para o
final onde eu apresento meu argumento:
& Na citação do
1Sm 18:1, a ARC traduz: “a alma de Jônatas se ligou com a alma de Davi; e
Jônatas o amou”. Quais sãos os termos no
original?
+ Ligar – o termo em hebraico aqui é קשר
(lê-se: qashar). O sentido
original é união proposital – que pode ser ilustrado em “respirar junto” ou
“conspirar” (como em 1Sm 22:13).
+ Amar – no hebraico: אהב
(lê-se: ‘ahab). Essa palavra
aprece mais de 200 vezes no AT e pode indicar um relacionamento profundo entre:
a) Deus-homem (Dt 6:1 / Sl 87:2); b) Amigos (Pv 17:17); c)
Pai/filho (Gn 25:8); e d) Homem-mulher (Jz 16:4).
& No capítulo 20
lemos no verso 16 a fala de Jônatas como “aliança” (traduzida assim tanto pela
ARC como pela NVI). O que diz o
original?
+ Aliança – no original hebraico: כרת (lê-se: karath). Quando Deus se compromete com Abrão (em Gn
15:18) a aliança é selada no sacrifício de um animal (cortado em partes – verso
10) indicando que cada parte se pactuava em dividir/partir algo seu pela
manutenção da aliança.
& Em 2Sm 1:26, o canto
fúnebre de Davi é traduzido pela ARC como: “Mais maravilhoso me era o teu amor
do que o amor das mulheres”. Vamos
destacar o original:
+ Ser maravilhoso – a expressão no
original é פלא
(lê-se: pala’). Uma boa
compreensão desse verbo pode indicar “ser distinto”, “ser exclusivo”, “ser
surpreendente”. No Sl 139:14 Davi usa
esse mesmo termo para descrever o modo distinto, exclusivo e surpreendente como
ele foi formado pelo Senhor.
+ Amor – aqui na variação da língua: אהבה
(lê-se: ‘ahabah). Pela sintaxe
hebraica, deve funcionar como um adjetivo indicando uma qualidade ou
especificidade. A maneira como Deus é
descrito em Dt 7:8 ajuda na compreensão: “por que Deus nos foi amável,
ele guardou o juramento...”
Como o tema
proposto tangencia sexo, penso que vai ajudar no entendimento citar algumas
palavras que o hebraico bíblico usa para indicar relações sexuais e estão
ausentes nas narrativas de Jônatas e Davi.
+ Conhecer – a palavra em hebraico é ידע (lê-se:
yada’). Esse é um eufemismo da
língua hebraica para a própria relação sexual em si. Foi com esse termo que o Gênesis descreveu a
relação do primeiro casal e com isso geraram os seus filhos (em Gn 4:1). Mateus, mesmo escrevendo em grego, usou o
mesmo eufemismo (em Mt 1:25).
+ Deitar – em hebraico o termo é שכב (lê-se: shakab). A ligação dessa palavra é quase direta entre
a posição e a relação daí. As instruções de Levítico usam esse verbo para
descrever as relações ilícitas (veja Lv 18:20).
Ainda é dito que Davi se deitou com Bete-Seba e gerou uma criança (em
2Sm 12:24).
+ Nudez – na expressão hebraicaערוה גלה (lê-se: ’ervah galah)
– descobrir a nudez. Também no Levítico
na relação de proibições (veja Lv 18:8).
E o profeta lamenta, referindo-se a queda de Jerusalém, pela vergonha da
exposição de sua nudez – um estupro (em Lm 1:8).
Repito: nenhuma
dessas expressões são sequer insinuadas nas ligações entre Jônatas e Davi.
Agora, as
considerações sobre o tema.
Como apontei nas colocações
iniciais, não vou tratar nem de Sociologia (embora importante!) nem postagens
de redes sociais (essas duvidosas!).
Apenas uma
referência histórica. Tanto Jônatas como
Davi eram homens de seu tempo e precisam ser percebidos assim. Eles viveram num mundo violento em que
coragem, honradez e força eram atributos bastante valorizados. E, por outro lado, relações afetivas e
românticas, secundárias.
Olhando já para o
texto, observamos que, numa visão geral sobre como a Bíblia trata seus heróis, não
é padrão nas narrativas sagradas ter pudor em esconder qualquer deslize ou
pecado dos seus heróis. Ou seja, se tais
homens tivessem cometido qualquer falha de caráter ou conduta, a narrativa não
as teria escondido.
Posto isso,
chegamos à narrativa e vislumbramos um cenário de instabilidade política-militar
em Israel e dois homens em posições distintas – um era herdeiro do trono e
outro um líder em ascensão.
Nesse contexto,
uma possível oposição entre eles é diluída quando o texto apresenta que eles
decidiram fazer uma aliança de contornos estratégicos para ambos. Enquanto um faria as manobras políticas
necessárias no palácio, o outro usaria do apoio popular e de táticas militares
para se estabelecerem no poder. E os
dois se fortaleciam com essa aliança.
Também, não ocorre
no episódio nenhuma indicação de haver qualquer intenção romântica ou sexual
entre os postulantes ao poder (nem sequer induzida!), mas sim os laços entre
aqueles homens apontam a busca de poder e com isso, juntos, derrubar o rei Saul
e compartilhar a sucessão.
Sobre quem depois
se assentaria no trono, a sequência de eventos evita ter que responder essa
questão uma vez que Jônatas morre num conflito contra os filisteus (confira 1Sm
31:6) e assim libera o caminho para ascensão de Davi.

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