terça-feira, 19 de março de 2019

A SOBERANIA DE DEUS – uma análise de Rm 9:20-24



Vamos fazer uma análise do texto de Rm 9:20-24. Levarei em consideração suas questões, bem como o áudio que você me mandou depois.

Em primeiro lugar: um pouco sobre as palavras gregas mais destacadas do texto.
1. Honra – gr. τιμή. Embora a tradução usual como honra seja boa, é interessante notar que o sentido deriva da ação de atribuir ou reconhecer o valor de algo ou alguém. No grego moderno eles usam ainda para significar preço, valor. No AT, equivale ao hebraico כבוד que pode ser lido, por exemplo, no Sl 8:5 se referindo à dignidade atribuída por Deus ao ser humano ou em Pv 15:33 como acompanhando a humildade. No NT, Paulo instrui a atribuir a quem merece em Rm 13:7 e em Ap 5:13 todas as vozes da criação incluem na proclamação ao que está sentado sobre o trono.
2. Desonra – gr. ἀτιμία. Expressão pouco usada no NT grego, quer nesta forma de substantivo, verbo ou adjetivo. A formação etimológica é α + τιμή = não + honra. O sentido em geral aponta vergonha ou indignidade. Os sinóticos usaram para se referir ao profeta sem honra em sua terra (veja Mt 13:57 / Mc 6:4). Em 2Tm 2:20 a expressão grega encontrada no texto é esta mesma.
3. Vaso – gr. σκεῦος. Literalmente coisa. A tradução como vaso é uma referência ao objeto pela sua múltipla utilidade, principalmente doméstica. Em At 9:15 o Senhor se refere ao próprio Paulo como um vaso escolhido e em 1Ts 4:4 a coisa é o próprio corpo a ser possuído com honra (gr. σκεῦος … ἐν τιμῇ). Aqui em Rm, Paulo se utiliza da alegoria retirada de Jr 18.
4. Ira – gr. ὀργή. Em todo o NT grego esta palavra aparece quase 50 vezes (tanto na forma de substantivo como verbo), geralmente usada por Paulo e no Apocalipse. No verso 22 do texto de Rm 9 ela está em referência à ira mostrada por Deus e aos vasos de ira. Ira, raiva, indignação são boas traduções. Mas ainda em Rm 3:5 e 5:9 talvez julgamento ou punição possam traduzir melhor a mesma palavra.
5. Preparados – gr. κατηρτισμένα (de καταρτίζω). Morfologia: particípio, perfeito, passivo. Literalmente: preparar, deixar pronto, colocar em ordem. Em Lc 6:40 (com a mesma morfologia), a expressão se refere ao discípulo que concluiu a contento as instruções do mestre. Já em Hb 11:3 entendemos que a criação foi formada pela palavra de Deus (aqui infinitivo passivo). No texto de Rm, o fraseado não indica de forma explícita quem é o agente da passiva: quem preparou? Entendo que o apóstolo não estava interessado nessa discussão.
6. Perdição – gr. ἀπώλειαν. Geralmente usada em contextos escatológicos no NT grego, como em Ap 17:8; 2Pe 3:7 ou Mt 7:13. Porém em Mt 26:8 e Mc 14:4 a tradução desperdício é apropriada.
7. Misericórdia – gr. ἔλεος. Essa é uma boa palavra para entender o contexto e ajudar na explicação. Paulo já a havia usado no verso 15 logo antes (citando Êx 33:19 – heb. חנןno maravilhoso texto quando Moisés pode ver a glória do Senhor passando).

Tendo considerado estas análises linguísticas, vamos ler o texto todo e entendê-lo melhor.

Antes, permita-me uma citação. Escrevi recentemente algo sobre PANOS DE HONRA que toma como base esse texto de Rm 9:20-21. Ali me dei a liberdade de vagear no encontro de outros horizontes possíveis de interpretação do texto apostólico. Sua leitura pode ajudar (link aqui).

Paulo aos Romanos. A base teológico-doutrinária que o apóstolo argumenta na Epístola é a superioridade da graça em relação à Lei. Para embasar sua tese ele usa de várias analogias, comparações e citações do AT, começando por Abraão que foi justificado não pela Lei (Rm 4:13), passando pela escolha divina por Jacó (Rm 9:13) e principalmente afirmando que diante de Deus todos são igualmente pecadores – os que vivem sob a Lei e os que não vivem – logo falta-lhes a glória de Deus (Rm 3:23 – gr. ὑστεροῦνται de ὑστερέω – mesma palavra para indicar o que faltava ao jovem rico em Mc 10:21).
Vou insistir com Paulo. Mais importante que qualquer outra garantia, a manifestação da soberania é o que determina que nenhuma condenação há para os que estão em Cristo Jesus (Rm 8:1) e que a promessa a Abraão se cumpre não pela descendência através da carne mas nos filhos da promessa (Rm 9:8).
Assim é que o apóstolo chega ao capítulo 9 argumentando que a garantia do perdão dos pecados está na graça soberana de Deus e não na linhagem de sangue dos judeus – esse argumento é forte para Paulo! Lembre-se de que ele está em um embate ferrenho com os judaizantes no meio da igreja que ameaçava fazer sucumbir e invalidar toda a missão paulina aos gentios e, consequentemente, a própria igreja cristã com seu alcance universal.
Antes de prosseguir lendo o texto: – E a questão dos preparados antecipadamente? Querer usar esta citação como alicerce para uma doutrina da predestinação – como se Deus já houvesse antes do ato da criação em Gn 1 escolhido o destino de todas as criaturas – ou apenas descartá-la buscando exegese alternativa que suavize a questão é apenas atribuir a Paulo uma sistematização teológica completamente alheia a sua doutrina. Questões como esta só teriam destaque na Teologia cristã séculos depois.
Outro ponto antes de voltar ao texto é sobre a personalização ou individualização de nossa fé cristã. Nossa compreensão de um destino pessoal e eterno a ser certificado hoje é muito resultado de desenvolvimento posterior da doutrina cristã – também sob influência do individualismo moderno e do pietismo europeu.
Assim, voltando ao texto analisado.
Embora a Bíblia reconheça que há dois caminhos (confira Mt 7:12-13), Paulo no texto aos Romanos passa de largo desta questão. Honra/desonra, ira, perdição não são usados neste direcionamento. Aqui o ponto é sobre a soberania de Deus e de como ele a manifestou primeiramente aos judeus e depois aos gentios-cristãos para neles fazer conhecido sua graça e glória.
Deus é o Senhor e criador de todos. Primeiramente ele escolheu Abraão, Jacó e seus filhos para serem os portadores da Lei. Mas a Lei somente aponta/descrimina o pecado, não o redime – explicita pecados, não refaz a criatura moribunda (Rm 5:17). É por isso que a Lei e seus guardiães são vasos onde Deus apenas manifestou sua ira, sua vingança, sua punição. Creditou o salário do pecado (Rm 5:20 / 6:23).
Mas não era o fim que Deus pretendia. Esse vaso estava destinado a ser transitório, apenas preparar o caminho para o definitivo. Assim, para que todas as riquezas de sua glória fossem conhecidas, Deus preparou também por sua soberana graça vasos de misericórdia (Rm 9:23). Esses sim, atingindo judeus de sangues e gentios alcançados. Aqui estão os vasos de honra: todos os que são chamados filhos do Deus vivo (Rm 9:26).
Não faz muito sentido, dialogando com Paulo a partir de Romanos, que ele trate de indivíduos como vasos predestinados à ira. Os judeus, embora portadores da primeira aliança – a Lei –, eles também precisam, aqui individualmente, invocar o nome do Senhor para serem redimidos de vasos de ira para vasos de honra. Para Deus não há distinção entre ninguém (Rm 10:11-13).
Todos nós, humanos corrompidos pelo pecado, nascemos na carne sob o jugo da Lei, escravos do pecado, vasos desonrados – e os judeus mais ainda porque a conheciam em primeira mão. Todos somos feitos da mesma massa de oleiro. Mas Deus por sua graça soberana e misericordiosa preparou desde a fundação dos tempos um modelo de vaso de honra no qual quer nos tornar em Cristo Jesus.
Importante: Não há plano “B” de Deus e no plano “A”, onde a justiça/ira se funde ao seu amor gracioso, há incontáveis gentes de toda nação, tribo, povo, língua (Ap 7:9-10).
Contudo:
A responsabilidade é pessoal – certo! (Rm 14:12).
Deus não quer que ninguém se perca – certo também! (volte a Ez 18:32).
Deus ama a todo o mundo – certíssimo! (conhecido Jo 3:16).
Não há um justo sequer – é o que diz a Lei, logo todos são vasos de desonra (Rm 3:10-11).
Podemos deixar de ser escravos para sermos filhos de Deus – gloriosa certeza! (Jo 1:11-13).
Roupas brancas é promessa para os que se lavam no sangue do Cordeiro – seremos transformados na eternidade em vasos de honra (Ap 22:14).

Concluindo:
A Lei foi dada para que a desgraça fosse exposta – vaso de ira, vergonha, desonra e punição. Mas onde abundou o pecado, superabundou a graça – vaso de honra para glória de Deus (Rm 5:50). Esse é o plano predeterminado. Assim é a soberania cheia de graça de Deus em Cristo Jesus


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