terça-feira, 10 de maio de 2016

LITURGIA E ARTE – a música protestante brasileira

Que o povo evangélico é um povo que tem por tradição a música, cremos que não carece de comprovação.  Na tradição litúrgica protestante a arte musical tem sido motivo de orgulho para diversos grupos.  A Profª M.L. Sekeff nos aponta para o fato de que a própria história da música ocidental se confunde com o desenvolvimento da música litúrgica protestante.  Segundo ela é “J.S. Bach em seus 48 Prelúdios e Fugas (1722)” que dá a “afinação padrão da música ocidental hoje”.  Herdeiro desta tradição, o protestantismo brasileiro tem sido bastante rico na sua produção musical.
Antônio Gouvêa Mendonça observa que foi ocupação dos primeiros missionários norte-americanos que chegaram ao Brasil a partir de meados do século XIX a tradução e adaptação de hinos e cânticos comuns nos Estados Unidos; e citando David Martin, Mendonça observa a importância da música no culto protestante britânico, explanação que se enquadraria perfeitamente na descrição da liturgia protestante brasileira:
... não há dúvidas de que o hino proporciona a mais ressonante evocação do sentimento religioso na Bretanha: maior mesmo do que a liturgia.  A própria Bíblia dificilmente se rivaliza com os hinos, mesmo entre os mais biblicistas dos crentes.
Numa observação rápida desta hinódia transplantada do movimento avivalista norte-americano para o Brasil a partir dos hinários que foram sendo colecionados pelas diversas denominações, podemos constatar que o primeiro hinário protestante publicado no Brasil é o Salmos e Hinos, publicado em 1861 pelo casal de missionários presbiterianos Robert e Sarah Kalley contendo originalmente 50 cânticos traduzidos e produzidos por eles mesmos.  E do trabalho destes missionários basicamente toda a tradição de hinos do protestantismo brasileiro se tornou herdeiro.
O segundo hinário é o Cantor Cristão produzido pelo missionário batista Salomão Ginsburg, publicado pela primeira vez em 1891 e de cuja 36ª edição – que é a edição que diríamos definitiva e usada ainda hoje nas igrejas batistas brasileiras – obtemos os seguintes números: dois terços dos hinos são provenientes de autores não-brasileiros, sendo a maioria deles realmente norte-americanos do século XIX.  Pessoalmente as maiores contribuições são Fanny J. Crosby e o próprio Ginsburg, entre letras próprias e traduções.  Outro número interessante a se observar é que vários destes hinos provêm diretamente do Baptist Hymninal, um hinário publicado nos EUA apenas oito anos antes, o que nos conduz a acreditar que o trabalho dos missionários músicos refletia o que havia de mais recente então.
Ainda sobre a publicação e o uso de hinários três observações: Primeiro: Nem as igrejas do pentecostalismo clássico brasileiro escaparam desta prática: a Igreja Assembléia de Deus publicou e usa regularmente o Harpa Cristã, cuja contribuição em termos de hinos distintos dos que já constavam em hinários anteriores é extremamente exígua; observe-se que esta publicação tem servido a diversos grupos pentecostais, embora alguns mais recentes tenham optado pela publicação e adoção dos seus próprios hinários.
Segundo: A Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, embora tenha traços nítidos de uma igreja que classificamos como litúrgica, contudo já começa a se abrir para um culto bem mais próximo do protestantismo brasileiro de missão, prova disto é a publicação em 1981 do Hinos do Povo de Deus que, mesmo trazendo no seu final orações apropriadas para uma liturgia pré-fixada, abrange hinos de períodos que vão desde o século XVI – logo após a Reforma – até cânticos bem contemporâneos encontrados somente em coletâneas para juventudes das demais denominações e até negros spirituals, que é um estilo de certo modo ausente nos outros hinários.  Note-se que proporcionalmente apenas uma pequena parte das músicas contidas neste hinário estão presentes nos das demais denominações tradicionais brasileiras – entre eles o hino Castelo Forte composto por M. Lutero e tradicional em todo o protestantismo.
E terceiro: No início da década de 1990, duas das maiores denominações protestantes brasileiras promoveram uma renovação na sua hinódia: a Igreja Presbiteriana do Brasil – IPB publicou e passou a usar o Novo Cântico (1990) e a Convenção Batista Brasileira publicou o Hinário para o Culto Cristão (1991).  Um dado importante sobre estes dois trabalhos é que, além de aproveitar boa parte dos hinos tradicionais, acrescentando-lhes novas composições já com traços muitos mais brasileiros, estes dois hinários acrescentam no seu bojo o Credo Apostólico, no caso do primeiro, e leituras bíblicas liturgicamente distribuídas, no caso do segundo; o que aponta para uma aproximação destas igrejas a uma liturgia mais formalizada.
Quanto à teologia propriamente dita destes hinos cantados pelo protestantismo tradicional brasileiro, o trabalho de Mendonça é bastante abrangente e completo sobre o tema.  A partir deste estudo podemos classificar que a teologia expressa uma visão em quatro ângulos do protestantismo: pietista, peregrino, guerreiro e milenarista e que a figura de Jesus é o tema central cantado pelos protestantes.  Mendonça afirma que embora esta análise não seja tão simples, devido ao “extremo sincretismo ideológico e doutrinário dos cânticos”, contudo pode-se dizer que “o protestantismo no Brasil é um ‘religião de Jesus’, cristológica portanto”, pois é isto que canta.
Seguindo na análise, é a partir dos anos 1970 que um grupo de crentes brasileiros começa a se sentir incomodado com os cânticos e a liturgia como acontece em suas igrejas e a partir daí iniciam um movimento que se aglutinará nas chamada Comunidades Evangélicas que se espalharão por todo o Brasil, apresentando uma nova filosofia de produção de cânticos que será o grande influenciador da liturgia protestante brasileira no final de século XX.  As influências foram bastante variadas, tanto no estilo quanto na técnica em si, trazendo para dentro da liturgia elementos da contracultura hippie e do rock and roll além do uso mais livre da música brasileira.
Um dado importante a se destacar é que as comunidades representam o desaparecimento do hinário como depositário dos hinos e cânticos a serem usados nos cultos: o registro é feito quase que exclusivamente através de gravações que, vendidas indistintamente aos crentes de modo geral, chegam a todas as denominações e são disseminadas, reproduzindo a quase homogeneidade cúltica hoje como a que foi vista nos primórdios dos protestantismo brasileiro, embora não mais nos mesmos termos daquele, e sim com liberdade de se sentir brasileiro e, de certo modo, livre das tradições litúrgicas que lhes eram impostas.
Considerando o Credo Apostólico como depositário fiel da doutrina, tradição e teologia da Igreja Cristã e comparando-o com os cânticos das comunidades, estes expressam uma crença que não fere em ponto algum a fé cristã, ou seja, considerando-se o ponto de vista do Credo, a teologia dos cânticos das Comunidades não devem ser qualificados em hipótese alguma como heréticos.  Mas, diferentemente dos hinos tradicionais, os temas já não são a salvação e a busca aos perdidos para que estes se acheguem a Jesus humilde, contrita e arrependidamente.  O grande tema abordado é o senhorio de Cristo e a certeza de que ele reina e ainda o reconhecimento de Deus como Deus em seus atributos e a atividade da igreja em louvar e reconhecer a este Deus; sendo assim é comum se cantar em ritmo marcial o desafio do cristão de marchar ao lado do general que é Cristo.
Outros temas também podem ser encontrados porém com muito menos freqüência, tais como: humildade perante Deus e nova vida em Cristo (embora o tema da salvação explicitamente não apareça), evangelho social, unção do Espírito e união da Igreja.  Por outro lado, os temas da igreja peregrina e do milênio que estiveram constantemente presente nos hinos protestantes tradicionais agora estão completamente ausentes.  

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