Que o
povo evangélico é um povo que tem por tradição a música, cremos que não carece
de comprovação. Na tradição litúrgica
protestante a arte musical tem sido motivo de orgulho para diversos
grupos. A Profª M.L. Sekeff nos aponta
para o fato de que a própria história da música ocidental se confunde com o
desenvolvimento da música litúrgica protestante. Segundo ela é “J.S. Bach em seus 48 Prelúdios
e Fugas (1722)” que dá a “afinação padrão da música ocidental hoje”. Herdeiro desta tradição, o protestantismo
brasileiro tem sido bastante rico na sua produção musical.
Antônio
Gouvêa Mendonça observa que foi ocupação dos primeiros missionários
norte-americanos que chegaram ao Brasil a partir de meados do século XIX a
tradução e adaptação de hinos e cânticos comuns nos Estados Unidos; e citando
David Martin, Mendonça observa a importância da música no culto protestante
britânico, explanação que se enquadraria perfeitamente na descrição da liturgia
protestante brasileira:
... não há dúvidas de que o hino proporciona a mais
ressonante evocação do sentimento religioso na Bretanha: maior mesmo do que a
liturgia. A própria Bíblia dificilmente
se rivaliza com os hinos, mesmo entre os mais biblicistas dos crentes.
Numa
observação rápida desta hinódia transplantada do movimento avivalista
norte-americano para o Brasil a partir dos hinários que foram sendo
colecionados pelas diversas denominações, podemos constatar que o primeiro
hinário protestante publicado no Brasil é o Salmos
e Hinos, publicado em 1861 pelo casal de missionários presbiterianos Robert
e Sarah Kalley contendo originalmente 50 cânticos traduzidos e produzidos por
eles mesmos. E do trabalho destes
missionários basicamente toda a tradição de hinos do protestantismo brasileiro
se tornou herdeiro.
O
segundo hinário é o Cantor Cristão produzido
pelo missionário batista Salomão Ginsburg, publicado pela primeira vez em 1891
e de cuja 36ª edição – que é a edição que diríamos definitiva e usada ainda
hoje nas igrejas batistas brasileiras – obtemos os seguintes números: dois
terços dos hinos são provenientes de autores não-brasileiros, sendo a maioria
deles realmente norte-americanos do século XIX.
Pessoalmente as maiores contribuições são Fanny J. Crosby e o próprio
Ginsburg, entre letras próprias e traduções.
Outro número interessante a se observar é que vários destes hinos provêm
diretamente do Baptist Hymninal, um
hinário publicado nos EUA apenas oito anos antes, o que nos conduz a acreditar
que o trabalho dos missionários músicos refletia o que havia de mais recente
então.
Ainda
sobre a publicação e o uso de hinários três observações: Primeiro: Nem
as igrejas do pentecostalismo clássico brasileiro escaparam desta prática: a
Igreja Assembléia de Deus publicou e usa regularmente o Harpa Cristã, cuja contribuição em termos de hinos distintos dos
que já constavam em hinários anteriores é extremamente exígua; observe-se que
esta publicação tem servido a diversos grupos pentecostais, embora alguns mais
recentes tenham optado pela publicação e adoção dos seus próprios hinários.
Segundo: A
Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, embora tenha traços nítidos
de uma igreja que classificamos como litúrgica, contudo já começa a se abrir
para um culto bem mais próximo do protestantismo brasileiro de missão, prova
disto é a publicação em 1981 do Hinos do
Povo de Deus que, mesmo trazendo no seu final orações apropriadas para uma
liturgia pré-fixada, abrange hinos de períodos que vão desde o século XVI –
logo após a Reforma – até cânticos bem contemporâneos encontrados somente em
coletâneas para juventudes das demais denominações e até negros spirituals, que é um estilo de certo modo ausente nos outros
hinários. Note-se que proporcionalmente
apenas uma pequena parte das músicas contidas neste hinário estão presentes nos
das demais denominações tradicionais brasileiras – entre eles o hino Castelo Forte composto por M. Lutero e
tradicional em todo o protestantismo.
E terceiro:
No início da década de 1990, duas das maiores denominações protestantes
brasileiras promoveram uma renovação na sua hinódia: a Igreja Presbiteriana do
Brasil – IPB publicou e passou a usar o Novo
Cântico (1990) e a Convenção Batista Brasileira publicou o Hinário para o Culto Cristão
(1991). Um dado importante sobre estes
dois trabalhos é que, além de aproveitar boa parte dos hinos tradicionais, acrescentando-lhes
novas composições já com traços muitos mais brasileiros, estes dois hinários
acrescentam no seu bojo o Credo Apostólico, no caso do primeiro, e leituras
bíblicas liturgicamente distribuídas, no caso do segundo; o que aponta para uma
aproximação destas igrejas a uma liturgia mais formalizada.
Quanto
à teologia propriamente dita destes hinos cantados pelo protestantismo
tradicional brasileiro, o trabalho de Mendonça é bastante abrangente e completo
sobre o tema. A partir deste estudo
podemos classificar que a teologia expressa uma visão em quatro ângulos do
protestantismo: pietista, peregrino, guerreiro e milenarista e que a figura de
Jesus é o tema central cantado pelos protestantes. Mendonça afirma que embora esta análise não
seja tão simples, devido ao “extremo sincretismo ideológico e doutrinário dos
cânticos”, contudo pode-se dizer que “o protestantismo no Brasil é um ‘religião
de Jesus’, cristológica portanto”, pois é isto que canta.
Seguindo
na análise, é a partir dos anos 1970 que um grupo de crentes brasileiros começa
a se sentir incomodado com os cânticos e a liturgia como acontece em suas
igrejas e a partir daí iniciam um movimento que se aglutinará nas chamada
Comunidades Evangélicas que se espalharão por todo o Brasil, apresentando uma
nova filosofia de produção de cânticos que será o grande influenciador da
liturgia protestante brasileira no final de século XX. As influências foram bastante variadas, tanto
no estilo quanto na técnica em si, trazendo para dentro da liturgia elementos
da contracultura hippie e do rock and roll além do uso mais livre da
música brasileira.
Um dado
importante a se destacar é que as comunidades representam o desaparecimento do
hinário como depositário dos hinos e cânticos a serem usados nos cultos: o registro
é feito quase que exclusivamente através de gravações que, vendidas
indistintamente aos crentes de modo geral, chegam a todas as denominações e são
disseminadas, reproduzindo a quase homogeneidade cúltica hoje como a que foi
vista nos primórdios dos protestantismo brasileiro, embora não mais nos mesmos
termos daquele, e sim com liberdade de se sentir brasileiro e, de certo modo,
livre das tradições litúrgicas que lhes eram impostas.
Considerando
o Credo Apostólico como depositário
fiel da doutrina, tradição e teologia da Igreja Cristã e comparando-o com os
cânticos das comunidades, estes expressam uma crença que não fere em ponto
algum a fé cristã, ou seja, considerando-se o ponto de vista do Credo, a
teologia dos cânticos das Comunidades não devem ser qualificados em hipótese
alguma como heréticos. Mas,
diferentemente dos hinos tradicionais, os temas já não são a salvação e a busca
aos perdidos para que estes se acheguem a Jesus humilde, contrita e
arrependidamente. O grande tema abordado
é o senhorio de Cristo e a certeza de que ele reina e ainda o reconhecimento de
Deus como Deus em seus atributos e a atividade da igreja em louvar e reconhecer
a este Deus; sendo assim é comum se cantar em ritmo marcial o desafio do
cristão de marchar ao lado do general que é Cristo.
Outros
temas também podem ser encontrados porém com muito menos freqüência, tais como:
humildade perante Deus e nova vida em Cristo (embora o tema da salvação
explicitamente não apareça), evangelho social, unção do Espírito e união da Igreja. Por outro lado, os temas da igreja peregrina
e do milênio que estiveram constantemente presente nos hinos protestantes
tradicionais agora estão completamente ausentes.
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