terça-feira, 10 de dezembro de 2019

CARTAS DO TINHOSO – o amor e o prazer


Escrevi um início de resenha do livro de C.S. Lewis que em nossa língua veio a ser conhecido como Cartas de um Diabo a seu Aprendiz (releia aqui).  Ali fiquei devendo uma reflexão sobre algumas ideias e conceitos que podem ser lidos naquelas Cartas.  Pretendo aqui começar a pagar a dívida.
Percorrendo a leitura, o texto de Lewis se mostra rico e profundo – ele desafia, instiga, questiona e confronta.  É impressionante o suficiente para permanecer atual e relevante, mesmo já tendo quase um século.  C.S. Lewis continua sendo leitura obrigatória para qualquer um que se pretenda comprometido com o Reino de Deus e queira ir além das águas rasas da fé.
Considerando isso, vou aqui fazer apenas alguns destaques de suas ideias.  E para começar, preciso identificar mais uma vez os personagens, e como são tratados pelo missivista (vou tentar não dar spoiler).
As cartas escritas pelo diabo sênior visam instruir um tentador aprendiz como fazer seu paciente perder a sua alma eternamente.  E perceba que a avaliação da empreitada é feita nos seguintes termos: "O sucesso consiste em confundi-lo ao máximo".  Mas, embora diretamente as cartas queiram tratar de um caso específico, as lições ali servem para todo e qualquer um dos "bípedes desprovidos de cabelos" criados pelo Inimigo.
Nesta batalha, estão, de um lado, as hostes diabólicas que demonstram estar organizadas com hierarquia e burocracia bem distribuída e funcionando, e do outro o Inimigo que, "não fica satisfeito, nem mesmo em si, em ser uma simples unidade aritmética, pois alega ser três e, ao mesmo tempo, um, a fim de que sua bobagem sobre o Amor possa apoiar-se na sua própria natureza".
Aqui está o detalhe principal: um Amor que se baseia na própria natureza divina, porque "Deus é amor" (1Jo 4:8).  E é isso que o diabo não pode conceber.  Não há como ele absorver o conceito de que "o bem de um ser é o bem de outro". 
O que leva a uma conclusão diabólica e esquisita: "O Inimigo ama os seres humanos de verdade.  Isso, é claro, é algo impossível.  Ele é um ser único e eles são distintos dele.  O bem deles não pode ser o dele.  Toda a conversa dele sobre amor deve ser um disfarce para alguma outra coisa".
E nós que o amamos porque ele nos amou primeiro (1Jo 4:19), conhecemos a extensão da manifestação máxima desse amor na própria encarnação divina.  Ele – o próprio Deus em Cristo Jesus – se tornou humano, vivenciou nossas dores e temores, mas também degustou nossas alegrias, esperanças e prazeres.  Ao que o Screwtape deixa escapar: "ah, que vantagem abominável a do Inimigo!".
Ora, essa intimidade moldada no amor se mostra no quarto fechado quando "os animais humanos que se colocam de joelhos", pois será ali que o Amor "não ficará de braços cruzados" mas haverá de derramar "quantidades enormes de autoconhecimento sem o menor pudor".
Ao diabo, que anseia a alma humana para lhe servir apenas de alimento, sem dar nada em troca, restam apenas a curiosidade e a inveja desse relacionamento amoroso.  E o diabo lamenta com seu pupilo: "Você sabia que não é possível entreouvir exatamente o que o Inimigo diz a eles?".
Há ainda uma outra dimensão desse amor dispensado pelo Criador às suas criaturas prediletas: o "prazer real" (cuidado: não confundir com aquele corrompido pelo diabo!).
Observe que, sobre o prazer na vida humana, até o diabo reconhece que "trata-se de uma invenção dele, não nossa.  Ele criou os prazeres".  Coisa que o diabo não pode sequer criar ou copiar, apenas tentar distorcer e corromper!  O prazer é criação e dádiva do amor de Deus para nós – é fruto e demonstração de sua graça.
Mesmo nas pequenas coisas e detalhes, o diabo reconhece que "Ele encheu o mundo dele de prazeres.  Há coisas para as pessoas fazerem o dia todo sem que ele dê a mínima bola – dormir, tomar banho, comer, beber, fazer amor, brincar, orar, trabalhar".
É então que o velho diabo recrimina seu aprendiz: "você lhe permitiu andar até o velho moinho e tomar um chá ali – uma caminhada pelo campo, coisa de que ele realmente gosta, e isso, a sós".  Pois até o tinhoso sabe que é possível encontrar Deus nos pequenos prazeres e alegrias do cotidiano.
Mas, citando o tempo e o cotidiano, já abrimos uma nova janela para compreensões mais amplas, e outra vez, como já vão ficando longas as linhas, mantenho o compromisso de continuar refletindo sobre as ideias contidas nas Cartas.

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