terça-feira, 30 de julho de 2024

A DIETA DE JOÃO BATISTA



Desde criança aprendi na escola bíblica que a dieta de João Batista, no deserto, consistia de gafanhotos e mel silvestre (conforme narrado em Mt 3:4 e Mc 1:6).

Depois andei lendo e estudando então cruzei com várias opiniões diferentes:  # se João era um asceta essênio, deveria manter uma dieta vegetariana? # o mel era proveniente de abelhas ou de frutas? # a proteína vinha de inseto ou de alguma planta?  # a tradução tradicional está correta e ele comia realmente gafanhotos?

 

Para qualquer pesquisador honesto, aqui se tem um desafio interessante e que deve ser observado com cuidado e critério.

Qual interpretação aponta para a verdade?  Quem entendeu corretamente a dieta citada no texto bíblico?  E, principalmente, o que isso implica na minha compreensão textual?

 

Ocupei um pouco do meu tempo numa pesquisa sobre o tema.  Aqui vai algo do que descobri:

 

Primeiro a citação grega de Mt 3:4 –

... ἡ δὲ τροφὴ ἦν αὐτοῦ ἀκρίδες καὶ μέλι ἄγριον (NA27).

 

Jeronimo traduziu assim –

... esca autem eius erat lucustae et mel silvestre.

 

O mesmo texto no hebraico –

... ומאכלו חגבים ודבש היער

 

Quanto ao mel silvestre, embora alguns comentadores cheguem a considerar o sumo de frutas (como de tâmaras, por exemplo) como sendo a base do que João bebia, a opinião dos principais estudiosos que consultei aqui não corrobora com essa ideia.

No grego, a expressão é μέλι ἄγριον (pronuncia meli agrion – literalmente: "mel do campo") e no hebraico ודבש היער (pronuncia udëvash hayåar – literalmente "mel da floresta").

 

Já quanto a proteína.

A palavra em destaque é ἀκρίδες em grego (pronuncia akrides), lucustae em latim e חגבים em hebraico (pronuncia gêḇîm) – plural em todas as versões.

Detalhe: o gafanhoto está na lista que os judeus chamam de kosher – alimentos aprovados para a alimentação – conforme Lv 11:22.

Aqui eu encontrei muita discursão sobre o que seria realmente que João comia. 

 

Bem, não quero entrar nos debates linguísticos ou históricos dos detalhes culinários (comecei até a digitar alguma coisa sobre isso, mas desistir: apenas salvei o que já tinha feito e abandonei.  Abri um outro arquivo no computador e decidi ir direto ao ponto).

 

Então, o que os evangelistas nos queriam dizer ao citar a dieta de João Batista?

 

Podemos iniciar nossa compreensão do texto fazendo uma referência ao profeta Elias.  Nos livros dos Reis do AT, o profeta é descrito como alguém que viveu nos desertos de maneira rústica (confira 1Rs 17:2-6 e 2Rs 1:8).  Assim, ao apresentar João dessa forma, os evangelistas dão a entender que queriam fazer uma associação entre a vida e o ministério dos dois profetas.

João seria um herdeiro ministerial do grande profeta Elias – aquele que anunciaria a chegada do Messias (considere Mc 9:11-13).

 

Além do que, como João não é o personagem principal do Evangelho – é apenas o precursor (atente Jo 1:27) – o texto não se ocupa em apresentar detalhes. 

E ainda tem as distinções dos estilos de João e Jesus:  Lucas lembra que João tinha uma vida austera bem diferente da de Jesus, que foi acusado de ser comilão e beberrão (em Lc 7:33-34) e ambos foram censurados pelos religiosos.

 

Sobre o próprio João Batista, ele foi radical em sua vida, ministério e pregação.  Levou sua fidelidade à Lei, à moral e a Revelação que recebeu às últimas consequências.  Como um machado colocado à raiz das árvores (leia Mt 3: 7-10).  E isso ele encarnou em seus trajes e dieta.    

 

Para finalizar, entendo que é bom citar as palavras do zambiano batista Joe Kapolyo no Comentário Bíblico Africano:

 

Sua aparição e seu estilo de vida desafiaram os poderosos da época (...).  Sua mensagem contracultural.  João   mostrou como isso pode ser feito por aquilo que ele pregava e principalmente pela forma em que vivia.  Nós também precisamos ter certeza de que nosso estilo de vida combina com nossas palavras.

 

(Na imagem lá em cima, o quadro "São João Batista pregando no deserto" de Anton Raphael Mengs.  Obra de 1771.  Atualmente exposto no Museu de Belas Artes de Houston / Texas)

 

terça-feira, 23 de julho de 2024

DOMÍNIO E AUTORIDADE

 


Pelo que entendi de sua colocação, você está caminhando pelo que está sendo conhecido ultimamente como Teologia do Domínio

Mas, vamos às questões bíblicas – que é o que realmente importa – lendo os textos um a um:

 

Em Gn 1:26 o texto sagrado diz que Deus decidiu criar o ser humano – macho e fêmea – e dar a ele domínio (creio que a palavra-chave aqui é essa) sobre a criação.  E assim o fez.

A palavra em questão no hebraico é רדה  (pronuncia-se radah) e traz como significado tanto dominar e governar (estar no comando – como no Sl 72:6) como supervisionar ou guiar (dar um direcionamento – como em 1Rs 5:16).

 

Obs. 1.  Não devemos confundir com outro verbo hebraico נחת (pronuncia-se nacheth) que implica em impor, dominar, subjugar (que aparece por exemplo no Sl 38:10 – “ ... e sobre mim a tua mão pesou).

Obs. 2.  Uma sugestão: a partir do texto de Gênesis eu propus uma tradução poética da passagem bíblica que pode ser lida no Escrevinhando – no link.

 

Voltando a exegese do texto de Gênesis.  Entendo que a melhor forma de compreender o mandato da criação está em correlacionar os versos 1:26-28 com 2:15 quando o Senhor Deus atribui ao ser humano a tarefa ecológica de cultivar e tomar conta do jardim.  Ou seja, nossa responsabilidade de domínio sobre a criação é administração (mordomia) da obra criada e não de governo cultural ou político e nem social.

 

Vamos ao segundo texto – Lc 4:6.  Esse texto relata Jesus no deserto e como o diabo o tentou.  Na conversa, o diabo afirma que tem autoridade sobre os reinos do mundo e que a daria a Jesus se ele o adorasse.

Aqui a compreensão bíblico-teológica é de que a frase diabólica é em si uma mentira – ele age assim desde o início, como Jesus afirmou em Jo 8:44.  E mais: mesmo ele sendo tido como o governante desse mundo, a verdade bíblica é que ele não tem agora poder algum e já foi condenado (confira Jo 14:30 e 16:11).

 

Quanto a troca de autoridade?

Vamos considerar:

 

#1. No texto do Gênesis não há referência que, como consequência do pecado, a autoridade administrativa/ecológica dada ao ser humano tenha sido revogada.  Continuamos responsáveis pela mordomia e cuidado com o mundo que nos foi dado. 

 

#2. Quem diz que tem autoridade é o diabo, e ele é mentiroso e usurpador.  Não faz sentido ter como base de minha teologia uma afirmação diabólica.

 

#3. Jesus afirmou que todo o poder (autoridade e domínio) está com ele – Mt 28:18.  E que parte dessa autoridade foi repassada à igreja com o poder do Espírito para serem testemunhas do próprio Cristo – At 1:8.  O poder espiritual da igreja é para cumprir sua missão espiritual de pregar e viver o evangelho.

 

#4. Também Jesus, respondendo a Pilatos, afirmou categoricamente que seu Reino não é deste mundo (leia em Jo 18:36).  E de tal Reino somos súditos.

 

Obs. 3.   Ainda como sugestão: sobre a relação entre o Cristão e o meio ambiente, aqui no Escrevinhando:  A Ordem da Criação – no link0 Pecado e o Meio Ambiente – no linkUm Assunto Profético – no link.

 

  

terça-feira, 16 de julho de 2024

PENSANDO NO LIVRO DAS LAMENTAÇÕES – olhando a esperança

Trouxe uma primeira postagem sobre o Livro das Lamentações de Jeremias (você pode reler no link).  Aqui continuo a reflexão baseada numa lição publicada originalmente na Revista COMPROMISSO da Editora Convicção.  Continue pensando no Livro de Lamentações.

 


OLHANDO A ESPERANÇA –

 

Tendo certeza de que o castigo pelo pecado já se cumpriu (4.22), o lamento pode ser transformado em súplica: “SENHOR, lembra-te do que aconteceu conosco; restaura-nos a ti para que voltemos a ti, SENHOR; renova os nossos dias como antigamente” (5.1,21).

E a súplica sincera diante de Deus faz nascer a esperança.  O que começou como um choro doído e tristeza profunda, quando foi dirigido ao Senhor que é justo mudou em uma canção de esperança na certeza de que as misericórdias “renovam-se a cada manhã” (3.23).

Três fatores basicamente deram sustentação à confiança que veio da lamentação apresentada em forma de invocação ao nome do Senhor.

A primeira sustentação era a lembrança esperançosa.  Se o cenário não se lhe mostrava nada que inspirasse alento, que sua mente fosse ocupada de lembranças e esperanças (3.21).  Os olhos nas circunstâncias só mostravam desolação e provocavam lamentação, mas a lembrança e a certeza de que “bom é o SENHOR para os que esperam nele, para quem o busca” (v. 25), era sem dúvida um alento para continuar firme confiando naquele que não nos rejeita para sempre (v. 31).

No exercício da lembrança daquele que é grande em fidelidade (3.23) está a disciplina que dá base para suportar o jugo da juventude e, assim, calado e talvez solitário “aguardar tranquilo a salvação do SENHOR” (v. 26).

Distendendo daí, outro fator sustentou a esperança: o conhecimento.   O profeta sabia que o Senhor é bom e por isso ele “não rejeitará para sempre” (3.31) e, embora possa permitir que tristezas sobrevenham sempre “terá compaixão segundo a grandeza da sua misericórdia” (v. 32).

É certo que não é do agrado do Senhor “afligir nem entristecer os filhos dos homens” (3.33).  Por isso o lamento em forma de clamor apresentado ao Senhor voltou-se como esperança e resposta.  Não restou dúvida de que o Senhor atendeu sua prece: “Tu te aproximaste no dia em que te invoquei” (v. 57).

Assim, diante de tanta desgraça, a convicção de que “a bondade do SENHOR é a razão de não sermos consumidos”, certeza essa que se distende na absoluta verdade de que “as suas misericórdias não têm fim” (3.  22), também alicerça seu canto confiante.

Ora, baseado numa lembrança que produz confiança e na fé confiante de um Deus, resta mais uma sustentação da certeza de que o Senhor haveria de ouvir e atender o clamor da lamentação: o perdão. 

A causa principal da queda da cidade foi que “Jerusalém pecou gravemente” (1.8), disso o autor bíblico não tem dúvida.  Mas quando há uma mudança de atitude do povo examinado seus caminhos, levantando o coração e as mãos em direção a Deus e voltando para o Senhor (3.40,41), firma-se a fé: “tu não perdoaste” (v. 42).

Esse lamento que se mostrou inicialmente sofrido pelas desgraças vistas, finalmente foi capaz de ser a expressão da oração confiante: “Restaura-nos a ti para que voltemos a ti, SENHOR; renova os nossos dias como antigamente” (5.21).

(Da revista “COMPROMISSO” – Convicção Editora – Ano CXVII – nº 468)

 

 

Leia mais sobre o Livro das Lamentações 

Castigo e sofrimento link

Tristeza profundalink

O Senhor é justolink 

 

terça-feira, 9 de julho de 2024

PENSANDO NO LIVRO DAS LAMENTAÇÕES – 0 Senhor é justo

 

Trouxe uma primeira postagem sobre o Livro das Lamentações de Jeremias (você pode reler no link).  Aqui continuo a reflexão baseada numa lição publicada originalmente na Revista COMPROMISSO da Convicção Editora.  Continue pensando no Livro de Lamentações.

 


O SENHOR É JUSTO –

 

Aqui se apresenta o grande desafio daquela situação de sofrimento.  Como transformar a dor e o lamento numa experiência e vivência que aproximasse o profeta do seu Senhor?

Depois de reconhecer que a causa do sofrimento era o castigo divino por conta do pecado do povo e que os seus líderes espirituais tinham se desviado do caminho e dos mandamentos do Senhor, o profeta fez seu o clamor da cidade “Olha, SENHOR! Estou angustiada! Estou angustiada no íntimo!” (1.20).

Mas, mesmo em meio a tamanha dor e lamentação sempre será preciso manter a confiança de que “o SENHOR é justo” (1.18), pois somente nessa certeza é que será possível ainda suplicar “SENHOR; julga a minha causa” (3.59).

Em toda e qualquer circunstância essa certeza nunca deve se afastar daqueles que conhecem um Deus que é eterno e cujo trono subsiste de geração em geração (5.19).

Será ali então, diante dessa confiança, que as lágrimas que correm como um ribeiro se transformam de lamentação e tristeza profunda em um clamor confiante (2.18).  E essa invocação, derramada diante do Senhor até que ele atente e veja lá do céu (3.50), será ouvida e trará como resposta: “não temas” (v. 57).

(Da revista “COMPROMISSO” – Convicção Editora – Ano CXVII – nº 468)

 

 

Leia mais sobre o Livro das Lamentações 

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Olhando a esperançalink

 

terça-feira, 2 de julho de 2024

POR QUE A GALILEIA?


Mateus narra em seu Evangelho que, depois de ser tentado no deserto, Jesus voltou do deserto e se estabeleceu na Galileia – sua base seria a cidade de Cafarnaum – para se cumprir o que fora dito pelo profeta Isaías (em Mt 4:12-14).

A compreensão do ministério de Jesus como cumprimento das profecias também pode ser atestada na narração do Evangelista Lucas, que apresentou Jesus em Nazaré – cidade da Galileia – reconhecendo seu ministério como sendo a realização do predito pelo profeta Isaías (em Lc 4:16-21 citando Is 61:1-3)

 

Mas, por que a Galileia?

 

Além de reconhecer o cumprimento das palavras antigas, veja um pouco mais dessa região da antiga:

 

Confirme: Jesus foi criado em Nazaré – na Galileia – e concentrou seu ministério inicial em Cafarnaum – também na Galileia.

 

Sobre a Galileia: aquele lugar era um enclave de judeus no Norte que ficaram separados dos do Sul pela presença dos samaritanos.  Eles eram considerados como um povo pobre e de pouca cultura (em geral o termo galileu era usado como um insulto, ou como marca de desprezo e preconceito).

Para curiosidade: os judeus chamavam de הגליל (fala-se “Hagalil” – literalmente: “a província”) e os gregos: Γαλιλαία; de onde o latim: Galileia.  Geograficamente a região consistia na área desde o Rio Banias (região de Dã), ao norte, até as bases do Monte Tabor ao sul, o vale do Jordão, a leste, através das planícies do vale de Jizreel, e a planície costeira da Fenícia, a oeste.

 

Jesus claramente decidiu iniciar seu ministério entre aqueles que mais precisavam ser alcançados por sua ação de graça: os marginalizados, os pobres, os excluídos da sociedade, da economia e da fé.  Esse era exatamente o quadro da Galileia e das pessoas que ali viviam.

E o Homem Galileu – o Servo Sofredor – amou e se identificou com essa gente (considere Lc 9:58).

Jesus começou e priorizou seu ministério entre aqueles mais precisavam de seu amor e misericórdia e de lá estendeu sua graça a todo aquele que nele crer (Jo 3:16).

 

E hoje, onde fica nossa Galileia?

 

(Na imagem, lá em cima o mapa das regiões da Palestina na época de Jesus –

 fonte: https://freetaset.best)