Tem uma frase minha que uso sempre quando busco ler e entender a Bíblia: "Interpretar a Bíblia literalmente traz mais problemas que lições". Assim, entendo que toda leitura bíblica deve ser contextual. Isso é mais honesto com o texto e sempre será rico em ensinamentos.
Mas devo confessar que trabalhar o texto assim dá muito mais trabalho. Talvez seja por isso que muitos não querem essa trilha.
Depois de toda essa introdução, vamos a sua questão
O seu ponto foi sobre a serpente e a sua participação do episódio da queda do primeiro casa. Vamos entender:
Em primeiro lugar, a palavra em hebraico usada em Gn 3 (נחש) é um substantivo comum e a tradução correta é simplesmente serpente ou cobra. Essa palavra aparece em vários outros lugares do AT Hebraico (como no Sl 58:4 por exemplo).
Isso já nos dá uma pista de que o autor sagrado não estava querendo se referir a um animal específico mas a espécie como um todo.
Se fôssemos extrapolar um pouco, não seria exagero dizer que o Gênesis está opondo a raça humana - obra preferencial de Deus (representada no casal) - com o mundo bruto (representado na serpente). Mas aí é extrapolar o texto.
Voltemos:
No texto a serpente é descrita apenas como o mais astuto entre os da criação. E o autor parece não está muito ocupado com ela.
Já que falamos em leitura contextual, é bom lembrar que o povo de Israel sempre esteve vizinhando a outros povos que tinham na serpente a figura de seus ídolos. Então é fácil entender de onde o autor tirou a idéia.
A serpente é a própria possibilidade do mal, a tentação para deixar de ouvir Deus e se curvar aos desejos imediatos. É ela que faz a proposta para relativizar o Criador e os seus ditames.
Então, indo direto a questão, não parece que o autor de Gênesis compreendia a cena como uma possessão ou coisa parecida. Seria bem estranho naquele contexto, e provavelmente não faria nenhum sentido para os seus primeiros leitores.
E antes que fique grande demais essa resposta, deixe-me fazer apenas mais uma citação bíblica: Em Ap 12:9 João fala do grande dragão como sendo a serpente, chamada de diabo ou satanás.
Esse texto ajuda na compreensão pois é de Apocalipse
O que posso ver aqui é exatamente a confirmação do entendimento trazido do AT. João usa a figura (metáfora?) da serpente para descrever o grande opositor da mulher e do seu filho. Aqui não se fala em possessão ou influência. A relação é direta: um é o outro.
Entendo que Apocalipse deve ser lido assim: verdades espirituais expressas em linguagem figurada.
Assim aqui eu tenho um padrão bíblico que pode servir de chave para entender o primeiro e o último livro: o Acusador, representado na figura que serpenteia, sempre vai procurar trazer dúvida, morte e destruição para os que estão sob o cuidado e proteção divina.
Mas sempre haverá vitória no sangue do Cordeiro (Ap 12:10-11).
Nenhum comentário:
Postar um comentário