sexta-feira, 17 de julho de 2020

A AUTOCOMPREENSÃO DE JESUS

 

Lucas diz que Nazaré foi a cidade escolhida para seu primeiro contato mais formal com o povo – uma espécie de apresentação oficial.  Lá Jesus tinha crescido e com certeza era bastante conhecido de todos.

Num sábado, Jesus repetiu o gesto costumeiro de ir à sinagoga e então levantou-se para ler (confira em Lc 4:16).  Ele abriu o Livro de Isaías (em nossas Bíblias consta do capítulo 61), leu o texto profético e o aplicou para si mesmo cada uma daquelas palavras: hoje, se cumpriu a Escritura que acabais de ouvir (v. 21).

Na compreensão de Jesus, o que fora dito ao profeta deveria ser lido na sua intenção.  Assim deveria ser descrita a sua missão.  A missão que Jesus teria a cumprir era exatamente de evangelizar os pobres, proclamar liberdade e apregoar o ano aceitável do Senhor.

Em resumo.  Já na primeira apresentação, Jesus se define como aquele que veio em busca dos perdidos, dos excluídos da sociedade, dos sem esperança, dos alheios a religião oficial, mas que a todos eles o evangelho deveria ser oferecido.  Esta seria a prioridade de Jesus em sua missão.

Contudo, neste primeiro contato a reação foi contrária – ele não foi bem aceito: não é este o filho de José? (v. 22).  Aqueles homens não foram capazes de reconhecer no homem Jesus a manifestação divina real e presente.

Então que Jesus decidiu levar a mais adiante seu ministério.  Foi a Cafarnaum onde muitos se maravilharam com sua doutrina e teve a oportunidade de realizar seus milagres iniciais (leia Lc 4:31 em diante).

Acontece que Cafarnaum também não deveria o destino final de sua missão e ele apontou que era preciso ir a outras cidades também, pois – como ele disse – para isso é que fui enviado (Lc 4:43).

(Publicado originalmente na Revista "Lucas" - Editora Sabre)

 

terça-feira, 14 de julho de 2020

O SÉTIMO DIA E O TRABALHO DE DEUS

 

Vamos considerar em primeiro lugar o próprio texto de Gn 2:2.  Veja uma boa tradução:

 

Chegando ao sétimo dia, depois de Deus já ter concluído tudo o que tinha para criar, ele descansou.

 

Aqui o autor bíblico faz um interessante e gostoso jogo de palavras entre o verbo descansar (heb. שבת) e o numeral sétimo (heb. שביעי).  As duas palavras têm uma mesma raiz (bem como o nome do dia de sábado - heb. יון שבת).

O texto todo é um poema riquíssimo e aqui nesse versículo o autor faz a conclusão dele.  É como se o texto estivesse me dizendo: "agora tudo está completo como Deus queria".

Quanto ao que Deus fez nesse sétimo dia, o verso seguinte (2:3) diz que ele santificou.  Aqui há uma lição importante: o Deus que no princípio foi o Criador de tudo agora é o Santificador.

Sobre o nosso trabalho hoje, esse texto nos lembra do início de todas as coisas e de como o próprio Deus nos serve de modelo.  Também já há uma antecipação do Mandamento:

 

Em seis dias criem e trabalhem em todas as suas obras, mas separe um sétimo para descansar e o santifique ao Senhor.

 

sexta-feira, 10 de julho de 2020

ONDE ESTÁ TEU IRMÃO?

 

A história dos irmãos Caim e Abel e seu desfecho trágico é bastante conhecida.  Faz parte das narrativas contadas e recontadas nos quatro cantos da terra.

A malquerença fratricida contada no início do Gênesis descreve bem as consequências da perda do paraíso: a harmonia e irmandade deram lugar às desavenças e segregação. 

Nesse sentido, o episódio primordial daqueles irmãos espelha, de certo modo, a história de todos nós.  O desentendimento de irmãos que desemboca em morte: isso exemplifica bem a condição humana, desde a sua origem.

 

Na narrativa bíblica (em Gn 4), Caim, não mais podendo conviver com o êxito do irmão, resolve dar cabo da situação dissimulando e atraindo Abel para uma cilada de morte.

Com o sangue derramado e clamando aos céus, o próprio Senhor vem ao encontro de Caim e o questiona:

— Onde está teu irmão?

Resposta é um pouco de ironia, sarcasmo, desaforo, cinismo, insulto.  Ou uma sopa disso tudo:

— O que eu tenho a ver com a vida desse sujeito?  Por que eu tenho que dar conta dele?

Aqui não quero analisar a interpelação divina ou os desdobramentos que sobrevieram ao irmão assassino.  Quero aproveitar a retórica debochada para pensar o quanto Caim estava equivocado.

 

Por que tenho que dar conta onde está meu irmão?

E aqui eu identifico pelo menos cinco respostas:

1. Porque só me reconheço enquanto ser humano diante do outro.  Ou seja, minha identidade depende do outro. 

O Deus que nos criou é constituído em relacionamento Trinitário.  Nós, criados a sua imagem e semelhança, só o refletimos à medida que nos relacionamos.  Somos seres relacionais por constituição e semelhança com o Criador, então para que eu possa ter minha identidade perfeitamente constituída eu preciso dar conta onde está meu irmão.

É bem provável que muitos homens e mulheres de hoje tenham sua humanidade fragilizada por não olharem para o outro.

2. Porque o Deus que adoro busca pelo próximo.  Ou seja, minha adoração a Deus tem que refletir minha preocupação com o próximo.

Se o primeiro mandamento me aponta na vertical para um Deus único que exige adoração, o segundo, semelhante a esse, me descortina o horizontal.  Logo, para que minha adoração e culto sejam aceitos perante o Senhor eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Talvez aqui esteja o motivo de tantos cultos vazios de adoração - embora cheios de rituais, barulho e música - pois lhes falta a busca pelo próximo.

3. Porque nossa sobrevivência, enquanto espécie ou indivíduos, depende da participação de todos.  Ou seja, minha vida só subsiste na interação com o meu irmão.

Isso vale também para nossa sobrevivência como servos de Cristo.  Cristo fundou a sua igreja e cuidou para a vida e saúde espiritual dos salvos acontecessem em comunidade.  Então implica que para eu possa viver meu cristianismo de modo saudável eu preciso dar conta onde está  meu irmão.

Sem dúvida é por tal razão que cristãos hoje de vida e compromisso nominal com o Senhor experimentem um decaimento espiritual ao lhes engajamento com a sua igreja.

4. Porque é bom viver em comunidade.  Ninguém é uma ilha.  Ou seja, minha vida é melhor quando estou em contato com pessoas que me aprazem.

Entendo que a fala divina lá no início sobre como não é bom que o homem esteja só pode ser aplicada aqui sem dilapidar o texto.  É ruim viver só.  Por outro lado, uma boa companhia alegra e traz colorida à vida.  É por isso que eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Há muita gente irritada e irritante por aí - gente de vida chata!  E certamente eles são assim por se isolarem de boas amizades e irmandades.

5. Porque o futuro é construção coletiva.  Ou seja, meu porvir depende do que fazemos juntos hoje.

Eu sei e creio piamente na obra da graça e em como Cristo virá para resgatar os seus e restaurar a história.  Mas é indiscutível que aquilo que fazemos agora implica mutuamente naquilo que nos acontecerá.  Daí que para aguardar o futuro eu preciso dar conta onde está meu irmão.

Essa é a razão porque alguns olham para frente e sofrem ansiedade e angústia.  O futuro parece cinzento e sombrio porque falta a tantos um projeto digno de vida coletiva.

 

Assim posso concluir ecoando as palavras do Salmo:

 

Como é gostoso o elo entre os irmãos.  Parece o orvalho que desce suavemente fecundando os montes (Sl 133).

 

terça-feira, 7 de julho de 2020

MUDE A PERSPECTIVA

 

Considere as situações:

 

Um gigante filisteu está afrontando Israel.

Os israelitas:

— Ele é muito grande, não vamos vencer!

O pequeno Davi:

— Ele é muito grande, é mais fácil acertar!

 

Paulo está preso:

O soldado romano:

— Você está acorrentado a mim, nem tente escapar.

O apóstolo:

— Você está acorrentado a mim, então escute o que tenho para lhe dizer.

 

Os pés de Jesus foram ungidos:

Judas:

— Que perfume caro, podia ter sido vendido!

João:

— Que perfume caro, o cheiro é muito bom.

 

As chuvas voltam às terras de Belém:

Noemi:

— Você não é dessa terra, volte para seu povo.

Rute:

— Eu não sou dessa terra, mas a companhia vale o risco.

 

O que há em comum nessas narrativas?  Uma situação problema e diferentes possibilidades de perspectivas.

O que eu vejo em cada uma delas?  Mais do que um otimismo ingênuo, eu percebo que a capacidade de desenvolver a fé em meio à crise e continuar olhando na perspectiva do Alto, pode fazer toda a diferença.

E você, está olhando a partir de qual perspectiva?

 

sexta-feira, 3 de julho de 2020

O TAPECEIRO

 

A minha vida é por definição incompleta e está em construção.  Esse me parece ser um bom pano de fundo para o Tapeceiro de Stênio Marcius.

E se você não conhece, permita-me apresentar a canção e seu autor.  Stênio Marcius, compositor do norte do Brasil, lançou em 2002 seu primeiro álbum e desde então vem apresentando composições ricas em originalidade, sem se descuidar de uma boa base bíblica, teológica e cultural.

Naquele primeiro álbum, na primeira faixa - a canção que dá nome a obra - somos logo apresentados ao Tapeceiro que está a tear, fio por fio, toda a nossa história.

Então já aqui, no começo, uma citação bíblica me vem à lembrança para ter um molde para minha tapeçaria: "só eu sei os planos que tenho para vocês, e eles são de futuro e esperança - diz o Senhor" (Jr 29:11).

E olhando bem, cada detalhe se encaixa bem.  Minha vida em construção está se fazendo como uma tapeçaria onde cada fio é laçado e trançado pacientemente.  Mas esse não é um bailado aleatório de linhas e pontos que ao acaso vão se juntando e separando.  Há um artista, divino artista, que conhece a obra como ninguém e tem um plano já bem definido de como quer o resultado de sua obra - sua imagem e semelhança (é inevitável a citação de Gn 1:26-27).

Um detalhe importante.  O Mestre Tapeceiro nunca se cansa e nada pode impedi-lo de completar a sua obra (lembre Is 40:28 e também 43:13).

Assim, posso confiar nele, mesmo que numa primeira olhada minha vida possa parecer uma mistura descuidada de situações e eventos, apenas um bocado de nós e circunstâncias aleatórias sem perspectivas.  Mas preciso olhar direito, e pelo ponto de vista correto do Tapeceiro, para compreender que realmente minha vida é obra de tapeçaria e ela continua sendo tecida, dia a dia, momento a momento com cores alegres e vivas (acho que Ne 8:10 aponta nessa direção).

E só então eu vou finalmente perceber que toda a confecção da tapeçaria de minha vida e história incompleta desenhará a glória de Jesus Cristo.

Talvez esse já seja um ensaio do grande coral que entoará o canto eterno: "Somente o Cordeiro que foi morto é digno de receber honra, glória e louvor" (Ap 5:12).

 

 

Para atender uma solicitação do casal Reginaldo e Layslla de Moraes (@moraes.casal) com satisfação eu escrevi esse texto aí.  E se você quiser ouvir uma versão muito boa, sugiro a interpretação do Casal Moraes que você pode achar no YouTube

 

terça-feira, 30 de junho de 2020

ASSIM É O AMOR (parte 3)

 

Esta é a última parte da lista de atitudes que podem ser reconhecidas no amor, conforme o apóstolo Paulo cantou na sua Carta aos Coríntios.  Veja aí as expressões de 1Co 13:7-8.

 

Tudo sofre (πάντα στέγει) - uma boa opção de tradução seria: o amor tudo aguenta (ou leva nos próprios ombros).  Um bom exemplo foi dado pelo próprio Paulo quando declarou que preferiu aguentar qualquer coisa por amor para não ser pesado à igreja (confira 1Co 9:12).

Tudo crê (πάντα πιστεύει) - eu diria que o amor se baseia completamente na fé.  E é bom lembrar que Jesus declarou que quem nele depositar sua fé, ainda que esteja morto viverá (dito em Jo 11:25).

Tudo espera (πάντα ἐλπίζει) - também, o amor vive em toda expectativa (acrescento: boa expectativa).  Temos a garantia de que o Deus que é o amor nos outorga uma esperança a qual não decepciona (ateste em Rm 5:5).

Tudo suporta (πάντα ὑπομένει) - literalmente diria que o amor demonstra resistência. Ampliando o sentido: o amor é o alicerce seguro de tudo.  Aos Hebreus é dito que Jesus suportou tudo pelos pecadores (Hb 12:3).  Isso sim é atitude e exemplo de amor que é a base de tudo.

Nunca perece (οὐδέποτε πίπτει) - a última afirmação sobre o amor: o amor nunca cai derrotado - o amor nunca se rende, nunca se prostra, nunca tomba.  A falta de amor nos faz cair - como Saulo a caminho de Damasco (narrado em AT 9:1-6) - mas o amor divino sempre nos ergue.  Esse é o modelo.

 

Assim, chegamos ao último verso desse capítulo 13 com a afirmação categórica de que fé, esperança e amor (πίστις, ἐλπίς, ἀγάπη) ainda permanecem. Mas entre esses três, sem dúvida, o maior dele é o amor.

 

Leia também:

 

Aqui a 1ª parte - 1Co 13:4

Aqui a 2ª parte - 1Co 13:5-6

 

sexta-feira, 26 de junho de 2020

SABEDORIA E INTELIGÊNCIA

 

O livro da profecia de Daniel narra, nos sete primeiros capítulos, a trajetória de quatro jovens judeus na corte da Babilônia - Daniel (chamado em língua local de Beltessazar), Hananias (Sadraque), Misael (Mesaque) e Azarias (Abede-Nego).

Logo no começo da narrativa os garotos são apresentados como nobres exilados, levados de Jerusalém depois que o rei Joaquim sucumbiu diante do exército de Nabucodonozor.

Mas o rei conquistador tinha planos para os deportados: incutir neles a cultura, a religião e os hábitos babilônico, fazer deles típicos colonizados - uma recorrente relação de dominação cultural e etnocentrismo, de metrópole e colônia, de racismo e subjugação ideológica.

Aconteceu porém que os quatro heróis decidiram não se conformar com as práticas impostas.  Criado o impasse, os jovens conseguiram uma brecha de dez dias para provar que seu modus vivendi - ou Jewish way of life - apresentaria resultados mais expressivos.

Com um prazo tão curto, a intervenção divina fez toda a diferença.  E o texto sagrado diz: "A esses quatro jovens Deus deu sabedoria e inteligência para conhecerem todos os aspectos da cultura e da ciência" (Dn 1:17 - é interessante continuar lendo até o verso 20).

Se a intenção era capacitar os jovens com as artes e ciências daquela terra, foi-lhes concedida sabedoria e inteligência celeste.  Perspicácia, tirocínio, razão, ciência, intelecto; tudo isso e muito mais cedido de graça por aquele que tudo sabe e tudo conhece (lembro o hino de louvor em Rm 11:33-36 que louva o Onisciente).

Agora, me permita descrever a sabedoria e inteligência que foi dada aos jovens nobres, vinte e quatro séculos atrás, com modos de hoje.  Acho que assim fique melhor de entender.

Depois de se submeterem não ao capricho de um governante temporário, mas àquele que eternamente tudo define, os jovens passaram a dominar também o método, os critérios, os pressupostos e ditames de todo conhecimento científico.

Eles se tornaram versados em ciência pura.  Matemática, física, astronomia, mecânica quântica, química.  A formação e interação de elementos e forças.  Os tempos, os espaços e as sequências.  O Cosmo e o átomo.  O macro e o micro.

Eles dissecaram as ciências da vida.  Bioquímica, botânica, farmacologia, anatomia, ecologia, genética.  As enzimas, os ácidos e as células.  A fotossíntese, os instintos e a reprodução. A bio, a gaia e o zoo.

Eles compreenderam os meandros das ciências humanas.  Psicologia, sociologia, linguística, história, direito, geopolítica, antropologia.  A mente, a alma e seus contornos e cores.  As sociedades e seus mecanismos.  Os impulsos individuais e as pressões coletivas.  O meu e o nosso.

Mas também percorreram as trilhas do saber.  Filosofia, arte, epistemologia, literatura, metafísica, ontologia.  O pensamento e a lógica.  A sabedoria e a erudição.  A ética e a estética.  O belo e o correto.

Então eu, olhando aqueles doutos jovens, posso me ver chegando a duas conclusões.

Primeiro.  A verdadeira piedade cristã se opõe diametralmente ao obscurantismo intelectual.  John Stott já dizia que crer é também pensar.  Fé e ciências precisam ser parceiras e nunca adversárias.

É claro que sempre haverá aqueles momentos nos quais vou concordar com Agostinho que dizia: crede, ut intelligas - "creia para que possa entender".

Segundo.  Quando não consigo entender um determinado postulado ou enunciado eu não devo simplesmente relegá-lo a ignorância nem a detratação.  O entendimento joanino de investigar os espíritos, entendo que pode ser estendido para aqui (cito 1Jo 4:1).

Também é bom observar que Tiago instrui a quem não tem sabedoria que peça a Deus que ele dá liberalmente - como fez com os jovens judeus (a referência é Tg 1:5).

E acrescento uma terceira mais, fazendo minhas as palavras de Paulo: comam, bebam, creiam e aprendam; mas façam tudo para a glória de Deus (1Co 10:31).