A questão principal é em torno da ordenação ou não do sacrifício – e
isso em relação ao culto celebrado em Israel.
Tema interessante. Vamos lá. Creio que é possível dividir a análise para compreender
melhor o texto e seu significado.
¶ Para começar: a tradução em português.
“... nem lhes ordenei coisa alguma acerca de
holocausto ou sacrifícios.” – Almeida
“... nada lhes falei nem ordenei quanto a
holocaustos e sacrifícios.” – NVI
“... não eram ofertas e holocaustos que eu queria
deles.” – NVT
Elas parecem seguir a mesma compreensão de tradução.
A palavra aqui traduzida é o hebraico צוה (tsavah)
que literalmente, nesse contexto, pode ser traduzido como comandar, ordenar
ou dar instrução.
Curiosidade para acrescentar: a versão LXX em grego traduziu a expressão
como ἐνετειλάμην (aoristo do verbo ἐντέλλομαι) que em português indica dar
ordem ou instruir (mesmo termo presente em Mt 28:20). E a Vulgata Latina usou præcepi (particípio
do verbo præcepio) que pode significar tanto aconselhar
como prescrever.
¶ Vamos olhar no texto do Êxodo o que ele nos diz sobre o que Deus
queria na saída o Egito (depois voltamos a Jeremias).
Quando Moisés apresentou o requerimento do Deus de Israel a Faraó, as
palavras foram as seguintes: “Deixe meu povo sair para adorar”
(Êx 8:1).
Aqui a palavra em hebraico é עבד (avad) que significa exatamente curvar, prostrar,
submeter-se – ou, por extensão: servir (gosto como os ingleses
traduzem: service). Obs. Essa é provavelmente a palavra mais comum
para adoração e culto no AT.
Chegando ao Sinai, nos 10 Mandamentos (em hebraico: דבר – dabar – palavras),
a proibição do primeiro mandamento é sobre adorar outros deuses (ainda em
hebraico é עבד – avad).
As instruções para o holocausto – sacrifício sangrento – só vão aparecer
no desdobramento da Lei no Levítico.
Ou seja, o que Deus ordenou ao povo como proposta para sair do Egito era
para adorá-lo (não necessariamente para sacrificar animais e derramar sangue).
Essas citações me levam a entender que a adoração e o culto ao Senhor –
como ele mesmo requeria – seriam algo mais abrangente que apenas holocaustos sanguinolentos
de animais. Incluía, além das ofertas do
culto, uma vida de piedade espiritual, submissão ética pessoal e compromissos
sociais.
E aqui, já incluindo uma compreensão cristã na questão. Todo o sistema sacrificial que foi legislado
no Êxodo e no Levítico seriam apenas uma ilustração – ou sombra daquilo que
Deus realmente queria e apontaria para realização completa em Jesus Cristo
(tanto Paulo como o autor aos Hebreus trabalham nessa linha de raciocínio – Cl
2:17 / Hb 10:1).
¶ Outras citações, antes de voltarmos a Jeremias.
Essa implicação do culto requerido a Israel está demonstrada em textos
como o Salmo onde Deus – até com certa ironia – assevera: “não preciso dos
novilhos do seu estábulo” (Sl 50:9).
A leitura de todo o Salmo é interessante para demonstrar que, no culto
ao Senhor, embora os sacrifícios ainda fossem uma metodologia, o que realmente
importava eram o arrependimento e a gratidão.
E ainda é preciso citar os profetas quando declaram que “misericórdia
é o que eu quero e não sacrifícios” (Os 6:6). Ou, ainda mais enfático, “Devemos trazer
holocausto ao Senhor? ... o Senhor declara que pratique a justiça e ame a
misericórdia e ande humildemente” (Mq 6:6-8).
¶ Agora, voltando ao texto de Jeremias 22:7.
Achei aqui uma citação de John Wesley especificamente sobre esse
versículo:
Deus não condena essas ofertas, exceto comparativamente em relação à
obediência, não tanto quanto à obediência aos seus mandamentos.
¶ Agora, lendo o contexto em que o verso aparece, o profeta claramente
demonstra conhecer não somente a letra fria da Lei, mas o seu contexto e as
implicações espirituais, morais e sociais que ela traz. Como também a sociedade para a qual ele foi
chamado a profetizar.
E é a essa compreensão radical que Jeremias desafia o povo com as
palavras de Jr 22:7.
– Sim. Deus
ordenou os holocaustos. Mas, de que adiante manter os rituais de sacrifício e
culto em funcionamento, como se Deus em algum momento precisasse ser satisfeito
com tais liturgias, se não havia obediência ao conjunto dos mandamentos?
– Quando o
Senhor libertou Israel do Egito, ele o fez para que o povo o servisse e
seguisse seus preceitos, e não para que o alimentasse com suas ofertas e
holocaustos (como o faziam os povos ao redor de Israel).
– Holocausto
e rituais são importantes, mas não são o essencial.
¶ E concluindo, citando novamente o apóstolo Paulo:
– O nosso
próprio corpo apresentado a Deus é o holocausto que implica em nosso culto que
faz sentido (Rm 12:1).
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