Eis o objetivo principal da
Epístola a Filemon: o problema entre o rico Filemon e escravo Onésimo, ambos
cristãos.
Depois de introduzir
apresentando-se como prisioneiro de Cristo Jesus e uma palavra de ações de
graças pela fé e amor do destinatário, Paulo chega finalmente ao âmago da
questão, e o faz de maneira enfática – mesmo não se utilizando de sua
autoridade apostólica para ordenar – servindo-se apenas de paralelismo e jogo
de palavras riquíssimos.
Vamos trabalhar um pouco
com elas – as palavras.
Para provar que realmente
houve uma mudança, Paulo joga com o significado do nome Onésimo (Ὀνήσιμος –
literalmente: aquele que dá lucro – v. 11). Ele, que tinha sido inútil (ἄχρηστος),
agora, após o contato com o evangelho, tornou-se útil (εὔχρηστος), ou
seja, apto para exercer as funções que lhe fossem atribuídas.
Mas a principal diferença
entre o antes e o depois do evangelho está em como este serviço seria prestado:
antes ele era escravo (δοῦλος –
v. 16) mas agora seu trabalho consistia num serviço voluntário (διακονέω – v. 13 – aqui na forma verbal: servir),
serviço este que é a base das relações cristãs, e que exige reciprocidade.
Tudo indica que Paulo tinha
em mente fazer com Onésimo o que era feito com os libertos da sociedade
romana. Ainda que esta libertação fosse inter amicus, ou seja, sem a
intermediação jurídica, o que o apóstolo queria era habilitá-lo a trabalhar
como sócio de Filemon – situação prevista na lei romanos acerca dos escravos.
A Vulgata Latina ajuda a
entender este ponto de vista ao se referir ao serviço de Onésimo (v. 13) como ministreret pois era o que se esperava
de um carissimum fratum ... et in carne
et in Domino (veja o v. 16). E aqui
há indicação segura da lei romana de que a libertação e alforria legal de um
escravo consistia inclusive em considerá-lo com sendo igual ao seu senhor
perante a sociedade.
Há um outro ponto de vista
importante a ser observado: a origem judaica de Paulo. Ele certamente conhecia os preceitos bíblicos
de que um escravo, ao ser liberto deveria lhe ser concedido sustento para o
ajudar a começar a viver em liberdade (leia Dt 15:12-14).
Então Paulo apela para que
a dívida de Onésimo fosse colocada na sua conta, e também pede para que este
seja aceito e que uma dívida de Filemon para com Paulo fosse creditada a
Onésimo. É provável que daí saísse os
proventos necessários para começar vida nova.
Sem dúvida, porém, tudo
leva a crer que o apóstolo estava indicando uma aplicação direta e prática de Gl
3:28 onde fala na igualdade de todos dentro da comunidade cristã, logo não deve
haver nem escravos nem livres (οὐκ ἔνι δοῦλος οὐδὲ ἐλεύθερος – observe que esta última palavra está
ausente da Epístola a Filemon). Isso
tudo, contudo, baseado na suprema lei do amor.
Os números da época nos
informam que no primeiro século – quando Paulo escreveu a Filemon – havia no
Império Romano cerca de 70 milhões de escravos, e esta enorme quantidade de
homens, mulheres e crianças à margem das oportunidades do processo social era,
sem dúvida, um contingente expressivo capaz de, por uma revolução sangrenta,
derrubar o império se houvesse quem os liderasse.
Na visão cristã paulina,
contudo, isso não resolveria o problema das desigualdades sociais: apenas
mudaria de foco. O apóstolo tinha a
certeza de que somente um ser humano novo, influenciando a sua comunidade pode
produzir relacionamentos inter-humanos novos e assim construir toda uma nova
sociedade. Ou seja, a solução só
chegaria através da força revolucionária do amor cristão: através de homens e
mulheres que encarnassem o amor a partir de suas comunidades.
Assim é que, lendo a
Epístola a Filemon, ela desponta como um desafio emergente para a igreja de
Cristo. A igreja precisa descobrir onde
ainda imperam as desigualdades entre os seres humanos para ali injetar uma dose
de amor cristão. Onde há escravos que
precisam ser alcançados e transformados em irmãos caríssimos.
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outros livros:
TU ÉS DIGNO – Uma leitura de Apocalipse
DE ADÃO ATÉ HOJE – Um estudo do Culto Cristão
PARÁBOLA DAS COISAS
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